Dois corpos na cumplicidade de um dançar – os irmãos Ebinum, da Nigéria
Os irmãos Victory e Marvel Ebinum são dançarinos autônomos que vivem em Lagos, Nigéria, país que compartilha com o Brasil culturas e histórias, em um laço criado a partir da violência da escravidão. Absolutamente movidos pela paixão de mover seus corpos como no ato de respirar, tive a chance de conversar com eles na terça-feira, por meio de uma chamada de whatsapp. Dançar é uma questão de sobrevivência para suas almas africanas e jovens. Eles vêm uma família de 4 irmãos, sendo os caçulas: Victory tem 21 e Marvel, 18. O mais velho, desde sempre foi motivado pela dança mesmo em um contexto pouco propício a isso. Em 2015, conseguiu participar do projeto “The Dance Deal Training Foundation” na cidade, uma academia que ajuda jovens interessados em desenvolver sua paixão pela dança. Passava horas por lá e voltava para casa, compartilhando todos os ensinamentos com seu irmão mais novo, que foi se apaixonando igualmente.
Victory largou a academia para se dedicar integralmente com Marvel a aprender a partir de vídeos do Youtube de diferentes companhias de dança e coreógrafos do mundo, ensaiando e absorvendo cada fluir e cada movimento que fazia sentido para eles, com o estilo que procuravam e admiravam. Criaram um estilo próprio de dançar, não reconhecido no país.
“Ser um dançarino homem na Nigéria é algo completamente inusitado. Na verdade, ser um dançarino na Nigéria é algo complicado. Não conseguimos nem comparar com nada, porque não existe esse cenário aqui. Existem movimentos locais, mas de jeito nenhum com visibilidade internacional”. Eles começaram, em 2018, a gravar vídeos e subir no Youtube para poder ultrapassar as fronteiras da Nigéria, algo nada simples na realidade em que vivem.
A produção de cada vídeo não é fácil pela falta de recursos técnicos e financeiros da família. Mas isso não faz dos vídeos ruins… pelo contrário, a intensidade dos passos, os pés tateando a terra são mais fortes do que qualquer problema técnico. Um deslocamento no qual o tempo é preciso. Muito do dinheiro que conseguem, sendo professores ou participando de algumas poucas ações locais, é destinando a seus pais, que sempre os incentivaram emocionalmente e não têm estabilidade financeira.
Os dois são cúmplices em tudo que fazem. Eles me contam que pensam a mesma coisa quase ao mesmo tempo de tão conectados que são. Esse alinhamento e esse laço afetivo super profundo fica claro em seus passos e em cada coreografia que desenvolvem. Seus corpos desenvolvem uma qualidade de presença, permitindo que o corpo dite sua própria existência no espaço. Todos os sentimentos são transformados em movimentos com uma força poética, fluida e melódica, em um dizer próprio corporal. Numa experiência senciente, transformada em uma dança.
Um deslizar dos pés que flutuam e a cada passo reorganizam todo o território que habitam, nas paisagens nigerianas, escolhidas por eles para cada performance. Uma relação espacial sem fronteiras entre os corpos é o que acontece. Victory e Marvel são como um prolongamento mútuo. Cada um com suas sucessões de micro acontecimentos individuais que transformam o sentido do movimento no espaço-tempo de seus corpos.
Cada passo se esparrama como uma extensão da natureza. O vento, a água, o barulho das árvores, a poeira que emerge do solo. Tudo para eles é dançar. “Tornamo-nos esses movimentos da natureza”. Cada andar na dança escuta o solo, a terra, os batimentos cardíacos e a respiração, tendo os ouvidos nos pés. Um ouvir que gera ação e se mimetiza ao entorno. “Amamos dançar rodeados pela natureza e ser atravessados por essa atmosfera, estar conectados com nossos movimentos intensamente, trazendo uma inspiração para nossas coreografias e para quem assisti-las”. Um tempo de coexistência entre o ser e o estar na paisagem escolhida, metamorfoseando, na potência de afetar e se deixar ser afetado por cada encontro com o outro e com o que os rodeia.
Suas trilhas sonoras são de dar aquele apertinho na alma. Quando perguntei a eles como eram escolhidas, a resposta foi “Obrigado por essa pergunta. Não escolhemos as músicas, são elas que nos escolhem para ganharem um movimento corporal”. Os sons trazem um devir harmonioso para esse dançar.
Com as roupas que têm, câmeras antigas e emprestas, celulares sem tantos recursos e muita prática, vontade e imersão, eles são um ponto de virada no horizonte da dança na África. Pretendem arrecadar fundos a partir de uma ação de financiamento coletivo para ultrapassarem todas as barreiras que os separam do resto do mundo.
Estava nos planos da dupla sair de Lagos pela primeira vez, a convite de algumas instituições europeias a fim de oferecer aulas e workshops. Mas por conta da pandemia esses projetos estão suspensos.
Estamos aqui torcendo para que eles alcancem o mundo com essas coreografias bonitas, enraizadas nas sensações e no fluir do que os rodeia, levando o país africano para fora, colocando a Nigéria no cenário da dança.
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