A utopia de um abraço – a obra dos artistas chineses ‘Gao Brothers’
“Orio Vall, que cuida dos recém-nascidos em um hospital de Barcelona, diz que o primeiro gesto humano é o abraço. Depois de sair ao mundo, no princípio de seus dias, os bebês agitam os braços, como buscando alguém.
Outros médicos, que se ocupam dos já vividos, dizem que os velhos, no final de seus dias, morrem querendo erguer os braços.
E assim são as coisas, por mais voltas que se queira dar à questão, e por mais palavras que se diga. A isso, simples assim, se reduz tudo: entre o primeiro bater de asas e o derradeiro, sem maiores explicações transcorre a viagem.” A viagem, de Eduardo Galeano.
Os irmãos Gao, de Jinan, China, estão entre os nomes mais relevantes da arte contemporânea e política no país, com obras nos mais importantes museus do mundo. Marcados pela morte do pai sob o regime maoísta, envolvidos em manifestações na praça Tiananmen (que custaram seus passaportes por anos), os dois irmãos compartilham uma atitude crítica em relação à sociedade chinesa e um questionamento da humanidade.
Desde 2000, eles realizam uma obra que tem o abraço como tema principal. Sim, o abraço, tão distante e tão necessário nos dias de hoje. Um abraço que não se pode dar, um afeto que não se pode receber. Ok, estamos nos reinventando com a maneira de se conectar ao outro, de estar “perto” estando longe e de se fazer presente na ausência, mas nada, absolutamente nada, substitui um abraço. Tem o calor do corpo, o corpo-ninho, pele com pele, sentir o respirar e o coração do outro bater. Esse pulsar não consegue ser substituído pelas telas.
O abraço se tornou uma utopia, o inalcançável, o medo. Afinal, são mais de 100 dias nos quais tudo acontece. A vida parou de jeito, mas continuamos sendo atravessados pela avalanche de sentimentos que nos habitam. E tem horas que só um abraço resolve.
Conheci a obra dos Gao no festival de fotografia de Arles, na França, há 13 anos, e uma das imagens dessas performances já foi meu fundo de tela, minha capa do facebook, wallpaper do whatsapp… Semana passada, me peguei olhando para ela com uma sensação completamente nostálgica, com a saudade de ouvir e sentir de perto um coração bater.
Em 10 de setembro de 2000, os Irmãos Gao reuniram 150 voluntários em Jinan, sua cidade natal, para realizar seu primeiro projeto de arte performática em massa: a utopia do abraço de 20 minutos. Com a ajuda de três ônibus, eles levaram vários voluntários ansiosos pelo que iria acontecer, para um local perto do rio. Na China, o abraço não é um hábito comum, mesmo entre amigos e familiares. Percebendo o nervoso de todos, eles deram uma demonstração se abraçando e depois abraçando os voluntários, mostrando que o ato de abraçar não era algo para se sentir vergonha, mas uma necessidade humana para ir ao encontro do amor próprio e pelo outro. Como parte da ação, depois de um pouco mais tranquilos, os voluntários foram buscando outros corpos para se abraçar e, durante 15 minutos, permaneceram ali, em duplas. Nos 5 minutos finais aconteceu um abraço em massa, rodeado apenas pela respiração e pelos batimentos cardíacos de cada participante, trazendo uma potência de sentimento para cada um deles única.
Alguns meses depois, no inverno chinês, os irmãos convidaram alguns amigos para ocuparem as ruas, esquinas e viadutos da cidade com abraços, misturando-se a desconhecidos curiosos que se entregaram ao movimento coletivo. Logo depois dessa ação, foram convidados para participarem na 49ª Bienal de Veneza, que teve um abraçaço programado no meio do Giardini com uma melodia de Bach. Por conta dos passaportes retidos, não puderem comparecer na cidade da arte italiana, mas organizaram uma performance online em tempo real com Veneza, no mesmo dia, desde o Teatro de Dança moderna em Jinan. Oito de junho de 2001 foi, assim, o dia do abraço. Como em muitas culturas o abraço não é algo comum e o abraço em alguém de outro gênero muito menos, muitos corpos, quando viravam só um, se sentiam perdidos nos devaneios do abraço do outro, inundados por lágrimas por terem sentido a preciosidade do gesto. Em agosto de 2001, eles contrataram 20 trabalhadores migrantes para se abraçarem na apresentação pública e isso se repetiu pelos anos seguintes. Os Gao foram ainda para Londres, a convite da BBC, para abraçar livremente os estrangeiros e depois seguiram para Marselha, Arles, Berlim, Tóquio, Oslo…
Os Gao provocam uma reflexão sobre o abraço pautada pela história política e econômica da China que alienava as pessoas umas das outras. Desde a obra “The Utopia of the 20 Minute Embrace”, eles trazem à tona a maior potência do ser humano, no amor com o outro. Estranhos que cruzam (ou cruzavam) nossos deslocamentos sem que a gente se de conta, distantes, cada um em seu mundo, quando se abraçam, é como se entrassem num mundo interno que nunca seria possível acessar de outra forma, porque a palavra não atinge esse lugar. Sentir o pulsar do outro, em silêncio, por alguns minutos e nunca mais. Existe uma troca individual e que acessa diferentes afetos. Nas bolhas individuais e isoladas que vivemos em tempos de isolamento social, olhar para abraços e imaginar o primeiro que daremos quando isso passar é o que nos resta, com a saudade de um, ali no horizonte, talvez ainda distante.