Saudade das pernas – Ensaio Palavra-Imagem com Daniela Arrais
Convidei a jornalista e sócia-fundadora da @contente.vc para essa edição do Ensaio Palavra-Imagem, que escreveu lindamente sobre as tantas saudades e angústias que nos atravessam nesse período tão fora de qualquer roteiro de ficção científica que tentasse contar sobre os anos 2000 do tal futuro. Para suas palavras, optou por fotografias de diferentes fotógrafos e diferentes lugares do mundo, desse “novo normal” que está sendo construído.
_____________________________________________________________
Saudade das pernas
Viver uma pandemia não estava nos meus planos. Me falta repertório emocional para passar por um momento histórico. Até gostava de ver filme e série e de ler sobre futuros distópicos meio catastróficos, meio inevitáveis, mas ainda assim, distantes. No futuro, afinal. Agora, enquanto um vírus se espalha quase sem controle e ainda podemos ser atingidos por nuvens de gafanhotos e tempestade de areia do deserto, queria escapar para o futuro-futuro-onde-sim-vai-ficar-tudo-bem-tomara. Ou então voltar para o passado, quando podia encontrar quem quisesse no momento que estivesse a fim. Saudade das pernas de vocês, como disse um amigo querido.
Porque na vida vivida pelas telas, alternando entre celular e computador, terminando o dia de frente para TV, vemos pedaços da gente. Estamos em uma observação constante sobre nós mesmos refletidos em lives, Zooms, videoconferências. Ainda bem que vivemos a pandemia em um momento que a internet dá conta de reproduzir múltiplos espaços da nossa vida, claro. Dá pra trabalhar, estudar, fazer doação, encontrar os amigos e a família, buscar entretenimento e informação (essa última, quanto mais moderação, melhor para sua saúde mental). É por ela que tentamos suprir a falta do outro com uma checagem emocional constante – agora a interlocução conta com minutos iniciais para conferir se tá dando pra atravessar o dia.
Ainda assim, que saudade de abraçar.
De ver, encostar, ocupar o mesmo espaço, ficar na rua, dançar, passear pela cidade, ir de uma exposição a um restaurante, emendar com a sobremesa, migrar para o quintal dos amigos, apertar as crianças que estamos deixando de ver na idade que elas têm agora – e me parte o coração não poder pegar no colo meu sobrinho de cinco meses ou brincar com um menino de três anos enquanto ele se diverte com um cachorro que é seu amigo também. Tem dias que sinto falta até da conversa de elevador, quando a gente conseguia falar sobre o tempo, e não sobre a pandemia vivida no pandemônio que se tornou o Brasil em 2020.
É aos sábados que essa saudade se intensifica. Quando a gente fazia tudo isso prolongando o dia para ficar junto, cada hora chegando mais um amigo, naquela aglomeração de afeto que era capaz de nos dar mais energia de vida. Conversando sobre todos diversos assuntos, lembrando do Carnaval que acabou de acontecer, dos planos, das viagens, reforçando nosso entendimento de que a gente vive bem quando vive junto. Ouvindo música, escutando o outro de corpo inteiro, experimentando até ficar em silêncio também. A conversa pela tela é focada, não deixa espaço para a pausa. E tantas vezes é no silêncio compartilhado que acontece uma conexão mais profunda.
Depois de 100 dias, começamos a experimentar a “fadiga da quarentena”. Nosso corpo faz um esforço para nos adaptar a situações como a que estamos vivendo. Quando precisamos fazer isso por muito tempo, esse mecanismo entra em falência. Começam as rusgas individuais por questões que são estruturais. O problema não é que sua amiga foi ao shopping quando considerou aquilo uma necessidade, e sim que vivemos um desgoverno, uma pandemia sem ministro da saúde, sem orientação – e sem subsídios para que ficar em casa deixe de ser uma questão de privilégio e se torne uma de saúde, de direito. Em vez de cobrarmos de quem têm poder, ficamos chateados com quem fura a quarentena.
A certa altura talvez muitos de nós vamos furar a quarentena, imagino. Porque a gente tem necessidade de afeto, de abraço, de toque, de ficar junto. E, sem previsão de quanto tempo vai durar a pandemia, vamos precisar desenhar alternativas para ver o outro com segurança, respeitando protocolos. Uma amiga me ajudou a levar o pensamento para um lugar menos rígido, falando de necessidade versus risco. “Comprar comida num supermercado é alto risco, mas grande necessidade, por isso vamos. No começo da pandemia a gente colocou os encontros como baixa necessidade. Três meses depois virou alta necessidade…”
Talvez a gente precise se envolver em plástico, como na cena abaixo, em um lar de idosos em Gravataí, no Rio Grande do Sul, que montou uma cortina plástica com espaços para abraços, para que eles pudessem entrar em contato com suas famílias. Ao olhar a imagem, primeiro senti angústia e quase um desespero. Para logo depois pensar que essa gambiarra pode se tornar possibilidade também. Se é disso que vamos precisar para viver momentaneamente o presente com um pouco mais de afeto, me vem à cabeça uma figurinha de Whatsapp: já tô com roupa de ir. Porque não vejo a hora da gente se encontrar de novo – e mais uma vez.