A voz de Samaneh Roghani – retratos de um Irã possível
Desde 2012, quando decidiu que queria e precisava viver sua própria vida, com suas próprias regras, habitando seu corpo, suas vontades e seu futuro, a artista Samaneh Roghani deixou Teerã, no Irã, não por ser perseguida, nem por estar fugindo, mas por conta própria, deixando a família para poder ser livre, em sua vida pessoal, nos trabalhos de arte que decidisse fazer e nos seus direitos como mulher. Ela diz “Onde esses assuntos não podem ser garantidos, alcançá-los é uma luta.”
O Irã, com seu governo autoritário censura qualquer manifestação de arte que questione ou provoque o governo. A repressão foi intensificada após os protestos que seguiram a eleição presidencial de 2009 e a controversa vitória de Mahmoud Ahmadinejad, no que ficou conhecido como o Movimento Verde. Ela, que sempre usou a fotografia, vídeo e instalações para poder dar voz a uma cultura, sofreu perseguições diversas vezes, tendo que controlar o que podia ou não fazer. Vindo de uma família de classe média alta, sabe que tem seus privilégios, apesar do fato de ser mulher adicionar algumas complexidades. Samaneh Roghani me contou que absolutamente qualquer trabalho, exposição ou performance feita em uma galeria precisa passar pela aprovação do governo.
“Tem um direito básico que toda mulher deveria ter, de poder usar o que quisesse, onde quisesse, tendo liberdade, sem ter que viver com o medo de acabar na prisão” reflete ela. Nessa sociedade, ser uma cidadã ativista se tornou viver presa em sua própria realidade e ela estava cansada disso, quando emigrou para Malmo, na Suécia.
No país escandinavo, pode expressar toda sua raiva, sua frustração, seu medo, ter uma voz ouvida, sem viver com o coração acelerado na expectativa de nunca mais voltar pra casa, presa, sumida ou executada.
Dona de um trabalho político e, claro, com todo o questionamento feminino “afinal, é minha história, eu sou mulher e conheço o mundo dessa perspectiva”, decidiu, a partir de 2017, não voltar mais para sua terra natal, temendo não poder sair de lá por opressão do governo, principalmente por seus dois últimos trabalhos: Barzakh (Limbo), 2018 e For the Silenced/For the Forgotten, 2019 . Muitos de seus amigos estão desaparecidos e/ou foram censurados de diferentes maneiras – da mais leva a mais pesada – e ela desistiu de tentar confiar no governo e numa sociedade regida pela opressão. “Agora não sou mais eu. Tenho um bebê de um ano que precisa de mim e não posso me arriscar. O importante é conseguir mostrar para o mundo, livremente o que acontece do outro lado.”
A instalação “Para os silenciados/ Para os esquecidos” trata diretamente de todos os ativistas políticos que morreram, desapareceram ou estão presos sem nenhuma data de liberdade no horizonte. Pessoas que deram sua vida à a luta por direitos civis e contra o regime autoritário. Ela passou um ano fazendo autorretratos em seu estúdio, na experiência de vivenciar dia a dia na prisão – dos dias que passou no cárcere – e de ser possuída pelo medo que a percorria enquanto vivia no país. Dia após dia de fotos de suas transformações internas – que foram muitas, nos 9 meses de gestação. No Irã, muitas mulheres estão na prisão, em péssimas condições. “Mulheres que defenderam e lutaram pelos meus direitos e de outras mulheres. Direitos que o regime tirou de nós. Agora eles nos aprisionam porque têm medo de nós.” A artista tem como seu maior objetivo reverberar avoz daqueles que nunca mais poderão ver a luz do sol novamente, aos que nunca saíram dessas prisões sombrias, silenciados pelo sistema, pelo medo e aqueles que não tem a menor ideia de como será o dia de amanhã.
“Uso autorretratos, porque são meus medos… talvez se eu nunca tivesse deixado Teerã e eu estaria sem ver o sol outra vez. Nas sessões de fotos semanais, me retratava como uma prisioneira e imprimia meus retratos nos azulejos para serem como paredes da prisão, que é tudo o que uma pessoa tem nessa situação. A parede como sua escuta, seus olhos, seu caderno de notas, de sonhos, de raivas e quem sabe de esperança.”
Longe dessa terra e dessas leis incabíveis, ela foca em reverberar a voz dos que não puderam sair, com a esperança de mudar alguma coisa, na raiz, de poder voltar para sua terra, com o direito de ir e vir sem o medo que ainda a atravessava. Ela comenta que o mais impressionante é saber que se vive dentro de leis que não se acredita e acostuma-se a viver com a sensação de medo constante, lidando com frustrações diárias, em processos de adaptação a uma realidade com a qual não concorda.
O Irã é um país que herdou tradições milenares, língua, música, cultura, cinema e teatro de alta qualidade que impressionam apenas os ocidentais que nunca se preocuparam em olhar para o “país dos aiatolás” despidos de seus véus orientalistas e da associação do Islã com radicalismo. Mas, antes de tudo, o Irã é um país de pessoas altivas, criativas e corajosas que lutam diariamente para continuarem a florescer nas brechas da repressão do próprio governo e dos inúmeros embargos, bloqueios e ataques de atores do Ocidente. Samaneh Roghani é uma mulher iraniana que, assim como tantas outras – lembro-me ainda de Marjane Satrapi do aclamado Persépolis – lutam no país ou na diáspora para que possam ser o que são e para que o Irã seja tudo aquilo que pode ser.