Fronteiras flutuantes e desafiadas – a obra do alemão Mischa Leinkauf

Abro o mapa na chuva
para ver
pouco a pouco
diluírem-se as fronteiras
as cidades borradas
diminuem de distância
as cores confundidas
nem parecem mais aleatórias
perderam aquele modo abrupto
com que as cores mudam nos mapas
agora há um grande lago
onde antes havia uma cordilheira
o mar não é mais molhado
do que o deserto logo ao lado

Deixo depois o mapa
para secar ao sol
sobre a grama do jardim
mais rápidas do que aviões
as formigas atravessam
de um continente a outro
uma lagarta riscada
apossou-se das Coreias
agora unificadas
um tapete de folhas
cobre o mar Egeu
e o rastro de uma lesma umedeceu
o Atacama
uma formiga enamorou-se
de um vulcão
exatamente do seu tamanho
um dos polos
ficou à sombra
e resfriou-se mais que o outro
de longe não sei se são moscas
ou os nomes das cidades

Penso que se deixasse o mapa aí
tempo o bastante
em algum momento surgiria
quem sabe
um pequeno inseto novo
com esse dom que têm os bichos
e as pedras e as flores e as folhas
de imitarem-se
uns aos outros
um pequeno inseto novo
eu dizia
um novo besouro talvez
que trouxesse desenhado nas costas
o arquipélago de Cabo Verde
ou as linhas finas das fronteiras
entre a Argélia e a Tunísia

Ana Martins Marques. “O livro das Semelhanças”.

Fiction of a Non-Entry, 2019, vídeo de 17 minutos, Israel e Egito (Câmera: Paul Rohlfs)

Conheci o artista alemão Mischa Leinkauf em umas andanças por Berlim no fim do ano passado, por meio de uma exposição na galeria Alexander Devy. Marcamos um café e passamos um tempo conversando sobre território, identidade, conflitos políticos e o ser humano em um contexto social fundado nas diferenças. Ontem, pensando sobre o que escrever, me veio à cabeça seu trabalho. O mundo de agora tem fronteiras de outras formas. Fronteiras blindadas por causa de um inimigo invisível. O lado de lá, proibido para os que estão do lado de cá. Não mais “apenas” por questões raciais, religiosas, econômicas ou políticas… Mapas redefinidos por mortes e faixas vermelhas, linhas de deslocamentos de processos migratórios… Um mapa cujas fronteiras são definidas por uma busca da ciência. Cada território com sua própria regra, medo e apreensão. Chegar ao lado de lá tornou-se uma utopia.

Instalação Fiction of a Non-Entry, 2019 na galeria Alexander Levy, em Berlim

As fronteiras e as experiências liminares estão no centro dos projetos artísticos e cinematográficos de Mischa Leinkauf, em um diálogo  com a estética, a política e a ética, lidando ainda com limites e restrições, mergulhado em como as legislações territoriais constituem as definições do espaço delimitados em barreiras de concreto, arames ou simples linhas pintadas no chão.  Como desafiar fronteiras com a arte?

Fiction of a Non-Entry, 2019, vídeo de 17 minutos, Jordânia,  (Câmera: Paul Rohlfs)

Por meio de intervenções em sistemas de ordem quase naturais, provoca situações que criam uma irritação temporária no espectador e no sistema, que permitem novas perspectivas sobre situações cotidianas, cruzando as fronteiras da liberdade individual estabelecida, a fim de questionar padrões e restrições comuns,  numa ressignificação das leis.

Fiktion einer Nicht-Einreise” – o vídeo-instalação que eu vi  na galeria Alexander Levy em Berlim – faz referência a expressão “ficção de uma não entrada” que vem da política alemã para refugiados. Embora o termo se refira a um enclave de privação de território – os chamados centros de trânsito – Leinkauf usa-o para levantar questões fundamentais sobre a norma e a prática de territorialidade e identidade.

São diversas as paredes que nos isolam do outro. No meio dessa pandemia, nós precisamos ficar entre blocos de concreto que chamamos de paredes. Mesmo agora com a flexibilização do isolamento social, nós, brasileiros, não podemos cruzar fronteiras, não podemos ultrapassar as linhas do mundo por conta de (in)ações de políticos  que nos deixaram ainda mais distantes do momento que poderemos estar mais perto territorial e geograficamente do outro.

Fiction of a Non-Entry, 2019, vídeo de 17 minutos, Marrocos e Espanha (Câmera: Paul Rohlfs)

Os 17 minutos do vídeo mostram o artista atravessando as fronteiras invisíveis no fundo do Mar Vermelho entre Israel, Jordânia e Egito, além da fronteira entre Espanha e Marrocos, no enclave espanhol de Ceuta, no Estreito de Gibraltar. Regiões militarmente protegidas por cercas e muros, muitas vezes estendidas por até 30 metros debaixo d’água. Essas barreiras no mar puderam ser atravessadas por Mischa depois de um ano de treino e pesquisa, mergulhando e traçando os “interespaços” nacionais. O vídeo mostra o artista caminhando tranquilamente entre um território e outro no fundo do mar, superando todas as fronteiras estipuladas, com toda a liberdade, trazendo um questionamento pulsante sobre os sistemas de controle na Terra.

Überwindungsübungen, Instalação dedicada a superacão física de limites urbanos arquitetônicas, seguindo protocolos das tropas fronteiriças de 1974 e 1975, simulando uma fuga nos dias de hoje dentro da antiga faixa central do Muro de Berlim, em parceria com Matthias Wermke e Lutz Henke 2015

Em julho de 2014, Leinkauf e Matthias Wermke,  seu parceiro de instalações na época, depois de anos de preparação, substituíram, clandestinamente, as duas bandeiras americanas  da ponte do Brooklyn, em Nova Iorque, por duas brancas costuradas a mão, no meio da madrugada. A imagem chamou a atenção e provocou reações imediatas dos moradores locais, da imprensa e do público internacional, num questionamento sobre patriotismo, espiritualidade, história, arte  e política de segurança… Por anos, sofreram acusações criminais nos Estados Unidos.  

White American Flags, 2014

Em outro trabalho, ele traz as bandeiras de Isarel e Palestina queimadas em forma de escultura, com todo o poder simbólico que elas carregam, manifestando a ideia de pontuação territorial. Ao queimá-las, ele consegue unificar os dois territórios: cores, formas e matéria das bandeiras se tornam semelhantes, como se no processo de queima permanecesse apenas a base comum dos modos de vida, do ser humano, além da camada devastadora de filiação nacional.

Glory, 2019
Glory, 2019

Como se definem as fronteiras no hoje em que vivemos? O que elas significam? Quais são seus limites além do político, além da nacionalidade, além da religião? Habitamos um mapa onde os territórios, em partes, se igualaram por alguns meses, pelo menos no ponto de mortes, mas que mostraram de forma latente suas diferenças. O poema da Ana Martins Marques sempre me trás essas reflexões sobre como seria o mundo com fronteiras flutuantes e permeáveis. Dois mil e vinte é o ano das utopias imaginadas. 

Leinkauf tenta colocar em pauta os opostos de um limite. O que seria opressor, em solo, é facilmente atravessado, pacificamente, por debaixo d’água. A submersão inclui questionamentos sobre violência, paz, hierarquias, abuso de poder e, principalmente, a subjetividade no contexto das classificações territoriais. Seu corpo se torna um ato de resistência. Ele se torna uma barreira navegante que acontece e permite, entre o vagar, andar, nadar na intersecção entre territórios sem conexão. Toda ordem pré-estabelecida se desmancha em seu deslocamento no silêncio do fundo do mar. As fronteiras de concreto se desfazem e se tornam flúidas, pelo menos por um instante.