‘Olha, está nuviscando’ – As nuvens inventadas do artista holandês Berndnaut Smilde
O que amor desalinha
O céu não basta por coberta
Como a nuvem:
o peito
já nascido desfeito
O dedo do menino
ínfimo, aponta o infinito:
olha, está nuviscando!
A nuvem espreita
os olhos do menino
e, em espelho,
vê o céu onde nasceu.
Poema “Nuvem” do livro Vagas e Lumes, de Mia Couto
Paralisar o que está sempre em movimento. O que remete a passagem do tempo, do dia, da noite e que anuncia o que está por vir. Aquele aglomerado de gotas diminutas de água ou de cristais de gelo em suspensão no ar, um chamado à contemplação. Vive em um infindável devir. Ora branca como a neve, ora em assombrosos tons cinzentos. Às vezes, beira os tons rosados, exuberante em seu estado denso, ou sutil como ópera ou uma canção de ninar. Permitem os encontros, de coletivos ou de alguns poucos individuais. Tornam-se um bloco no céu azul ou um sopro esparramado, quase transparente, que se junta ao horizonte ou atravessa uma montanha.
As nuvens estimulam o olhar. Acompanham o vento em danças contínuas, lentas e ritmadas, sem nunca repetir a coreografia. É a separação entre dois mundos cósmicos em um devir de metamorfoses, em sua natureza confusa, indefinida e impermanente. Na mitologia greco-romana, representam a morada dos deuses. Na cultura islâmica, é a nebulosidade da vida.
A nuvem, tão cheia de simbolismos e mutações, é um dos temas centrais da obra do artista holandês Berndnaut Smilde com quem bati um papo na terça-feira (21). Sempre fascinado pelas dualidades desse fenômeno natural, decidiu construir e paralisar por alguns segundos, em um clique fotográfico, algumas nuvens pelo mundo.
Ele, que sempre trabalhou com instalações e fotografias, em 2010 criou sua primeira nuvem, em uma sala em miniatura onde tudo podia ser controlado. Dois anos depois, essa imagem viralizou e, desde então, suas nuvens já habitaram alguns museus e edifícios históricos pelo mundo, já em larga escala.
O céu holandês e a luz do país já são conhecidas na história da arte, por sua potência difusa e um brilho particular que preenche quadros de inúmeros pintores. “Como não temos montanhas, 2/3 das sensações que você tem é o céu, e a luz que muda e é quase o tempo todo refletidas nas águas do país. Esse lado romântico das pinturas com nuvens sempre me atraiu. E também o lado da mutação constante”, conta o artista.
Ocupar edifícios históricos que já foram palco para esculturas, pinturas e instalações, com essas nuvens construídas é fascinante, contou-me Smilde. Os contrastes entre esses espaços, as texturas, os brilhos, as rachaduras na parede, as cores, nessa atmosfera incontrolável e sempre única. Perguntei se ele não ficava atiçado por fazer disso uma performance, um vídeo-arte, um “happening“, e ele me contou que o que importa é o registro do que aconteceu ali dentro do espaço. A solitude que ele vive em cada nuvem inventada. Como todo o entorno importa para a nuvem, quanto menos pessoas respirando na sala, mais “controlável”, afinal elas são água, gelo seco, e uma luz imitando o sol no contra. Ele fez um vídeo em “slow motion“ de uma nuvem em movimento, mas completamente em outro contexto: em um estúdio escuro. “Mas mesmo podendo ver o dançar das nuvens ali, é de algo que já aconteceu. Estamos sempre falando do passado.”
O espaço entre os acontecimentos, o que é, já se torna o não ser em milésimos de segundos está sempre presente em sua obra. “Se você chega muito perto de algo que parecia existir, já não é aquilo que você olhou de longe, também. Aquela ‘coisa’ já desapareceu”. Lidar com o não durável tem seu fascínio, porque a ação pode se repetir, mas sempre de uma outra forma. O mecanismo de criar essas nuvens é sempre o mesmo, mas lidar com o incontrolável é o que ele adora. Isso acontece o tempo todo… ainda mais agora onde a imaginação é o que temos nesses dias e as informações e imagens de tudo na internet. Por mais que a gente congele ou salve como referência na nossa “apple iCloud”, nunca encontraremos a referência como tal. O céu de algum lugar já não será mais aquele céu quando a gente chegar.
A dualidade de sua obra em ter algo construído pelo homem que não se torna matéria palpável. É o puro efêmero em um mundo absolutamente materialista. Não se pode sustentar, segurar e manter a nuvem. Existe a presença na ausência o tempo todo. Um piscar de olhos e ela já não está mais ali. Uma massa amorfa que pode ser experimentada apenas de longe, não podendo nos tornar participantes ativos dela. Na natureza real também é assim… Olhar para o céu parece quase meditativo, um cinema ao ar livre onde encontros e desencontros acontecem e talvez só você veja. Os fenômenos naturais precisam de olhos atentos, curiosos, à procura da contemplação. Em dias de isolamento acompanhar as transformações naturais, se tornou algo mais presente. Poder atentar-se aos pequenos acontecimentos a nossa volta.
Além das nuvens, ele também cria arco-íris pelo mundo, e busca coletar os pontos antipodais no globo – pontos diametralmente opostos na Terra – e mergulha em uma reflexão de que tudo está absolutamente ligado e que nós, humanos, fomos nos diferenciando com invenção de idiomas, culturas e religiões. “A questão de transitar pelo mundo e sempre imaginar a Terra de cima, perceber que quase tudo é água e que só estamos em lados opostos, é muito intrigante”. As nuvens são fenômenos efêmeros, mas que existem com uma certeza: neste momento, em algum canto do planeta, há um céu cheio de nuvens. A obra de Berndnaut Smilde nos permite imaginar que em alguma parede de algum dos quatro cantos da Terra também existam nuvens que, ao invés de deixar nossos horizontes mais nublados, torna-os mais leves e poéticos.