O corpo como território político – a obra da paraense Berna Reale
“Violento é aquele que faz do outro uma coisa”. Partindo dessa tradução livre da filósofa francesa Simone Weil, a artista paraense Berna Reale – um dos grandes nomes da arte contemporânea – traz todo o peso dessa reflexão no âmago de sua obra. Um questionamento crítico dos aspectos da violência, do racismo, da desigualdade e dos silenciamentos existentes em toda a nossa sociedade, numa reflexão sobre o mundo e a vulnerabilidade humana. Em instalações, vídeos e fotografias, Berna Reale utiliza seu corpo como um território político para dar voz a sua obra, mas não o corpo da Berna sujeita, mas um corpo social, coletivo.
Diferentemente do que se pensa na performance, na qual o corpo é tratado como objeto, Berna Reale não se coloca na pauta da dor, da cicatriz, do corpo como um objeto feminino. Seu corpo é o dos que estão à margem. Um corpo-carne, um corpo como símbolo coletivo. “Eu não estou falando do meu corpo físico. Não me machuco, não me corto, não me flagelo. Não deixo ninguém me bater. Obrigada por trazer essa questão, querida” me diz ela, em nossa conversa intensa, pelo telefone, na última segunda-feira. Um corpo político que se torna um símbolo.
Seu corpo numa presença visceral, necessária, em narrativas críticas, poluídas, densas e ensurdecedoras em alguns silêncios. Numa estética sem rodeios e direta para comunicar neste horizonte tempestuoso que habitamos, com uma pesquisa minuciosa de cada gesto, cada ação, cada ser naquela performance registrada em fotos ou vídeos.
Em sua obra “Limite zero”, Berna Reale treinou muito para não sentir dor e não ser machucar, por exemplo. Não está interessada no seu próprio sofrimento, de sua pessoa e corpo físicos, mas na ideia de passar a informação e trazer à tona o sofrimento coletivo. Existe um preparo intenso do corpo para deixar de ser um indivíduo e um objeto de desejo, um objeto pessoal, ainda mais sendo mulher. Foram meses sem ter a incidência do sol na pele, para não trazer o peso das formas, dos estereótipos da nudez e o que isso provoca na mentalidade masculina. Isso é Berna numa multiplicidade de corpos, um discurso da massa. “Esse limite entre corpo matéria, carne e corpo social é muito tênue e é onde pontuo todas as minhas pesquisas. O meu corpo como de qualquer mulher, qualquer carne, qualquer pedaço.”
Para ela, o artista tem que ter coragem de não desistir do humano, de usar a visibilidade para dar voz ao que precisa ser ouvido e não se escuta. Sim, é uma reflexão bastante presente em toda a arte contemporânea. Como falar do que não se sente na pele? Como ter um discurso sobre o que não sofreu? Essa questão do lugar de fala está nos rondando mais ultimamente com toda a problemática do racismo exacerbada nos últimos tempos.
Mas afinal, o que é esse lugar de fala dentro de uma sociedade onde não existe uma voz “pura e limpa”? Nascemos com uma camada racista em nosso ser, mesmo que a gente não tenha consciência disso. “O Racismo está na formação, na estrutura social. Enquanto os brancos que estão no poder, nos cargos, não se sentarem à mesa junto dos representantes dos que estão à margem, enquanto não forem pressionados para rever o sistema, ainda vamos ter muita dor. É preciso que se veja que é necessário eles estarem na conversa e não só de pele preta e os marginalizados pois eles é que são o sistema que precisa ser refeito”.
Reale, que trabalha como perita criminal há mais de 10 anos no estado do Pará, conhece a realidade de dentro, que não é filtrada. “Você é o primeiro espectador, tendo o real, o viver do fato. E não uma leitura sobre ele. Eu me tornei a pessoa que sou hoje com toda essa vivência. A minha vontade social mudou muito depois que de entrar na perícia. Tinha uma visão romântica do sofrimento e não o sentimento real dele, eu vejo a olho nu o sofrimento, olhando cara a cara, olho ao olho, não tem palavra entre, tem a imagem imediatada”.
Para a obra “Ginástica da pele”, reuniu 100 jovens para representar o sistema carcerário no Brasil, onde 67% são pretos ou pardos. A performance fala sobre o ato de punir sempre os mais desfavorecidos, numa simulação do ato de prender e enjaular os jovens. Ela, que está vestida de policial, postou parte da obra em seu instagram, na véspera de seu aniversário e sofreu a revolta de muitos que viram a obra, por ser uma policial branca. “Talvez porque muitos se identificaram imediatamente, e me fez perceber como essa reação era sintomática da nossa sociedade. Foi fantástico, porque ali me deu a leitura da genialidade de ter feito o dégradé das cores dos corpos e só me provou que funcionou o objetivo de um corpo causar uma revolta, cumprindo seu papel político. É o poder ali oprimindo sempre os mais pobres, os negros, periféricos, gays…” Ela teve a coragem de realizar essa performance num país onde o poder é branco. “Se eu fosse negra, não teria causado esse asco todo na obra”.
Todas essas realidades escancaradas ao espectador e à sociedade são capazes de nos atravessar e de fazer pulsar alguma indignação ou uma reflexão em quem vê, e espero que de alguma forma, afete o sistema. Sua obra Americano representou o Brasil na Bienal de Veneza em 2015 e está nas páginas da nova revista Zum, lançada na segunda-feira (27).