Adeus horizonte – Ensaio Palavra-Imagem com Noemi Jaffe e Gohar Dashti
Para esta edição, convidei a escritora Noemi Jaffe para compartilhar conosco suas palavras, inspirada pelo ensaio forte e delicado da iraniana Gohar Dashti. Noemi é autora de diversos livros, além de crítica, poeta, professora e sócia-diretora da “Escrevedeira”. Por sua vez, Gohar, em sua obra, apropria-se principalmente de temas sociais e tem obras em diferentes museus pelo mundo. Nestas fotos feitas no deserto iraniano, ela pensa as imagens como haikus, nas quais a compreensão é estética e sentimental. A combinação entre as duas é potente, uma coisa bonita e que aperta o coração da gente. Tá lindo demais.
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Dizemos que o tempo é fugaz: tempus fugit. Dizemos isso porque o tempo foge. Foge de quê, de quem, foge para onde? Foge, principalmente, de nós, que o queremos fixo ou, ao menos, mais estável. Mas ele não foge de nada e, se paro um pouco para pensar, ele nem foge. Nem passar ele passa: somos nós que passamos por ele, que fugimos numa travessia lenta, cujo fim sabemos qual é.
Fugaz é uma palavra linda para designar aquilo que foge.
Fugitivo não. Não aprendemos a admirar essa palavra tanto quanto sua companheira sinônima, fugaz. Fugitivos são perseguidos, condenados em dobro; não são aceitos, são rejeitados pelo lugar para onde fugiram; são traidores; são desafortunados. São tristes os fugitivos.
Fugazes são os amores de verão, as paixões, os misteriosos, o tempo das coisas prazerosas.
As pessoas à espera são fugazes ou fugitivos?
Como impor limites a uma fuga, cercando-a, mensurando-a, colocando seus participantes em lugares confinados, de forma a que eles estejam imobilizadamente em fuga?
Esse o lugar que ocupamos nesse momento pandêmico. Habitantes de parênteses cujas abas são a quarentena, em estado de fuga controlada. E esse também é o lugar daqueles que hoje estão efetivamente em fuga – no Brasil, na Síria, na Nigéria, no Haiti, na Venezuela – sem saberem nada de seu futuro, nem ao menos se serão recebidos no lugar para onde projetam ir.
Fugas quarentenadas ou quarentenas fugitivas, nos irmanamos na impotência, sonhando com fugacidades: o mar, o horizonte, os beijos, os encontros e a rua.
Um desejo desmesurado de aglomeração perigosa: infectar-me até morrer. Como uma dança de Pina Bausch, sair pelas ruas sem máscara, vestida de branco. Um séquito de noivos inúteis, como naqueles casamentos em massa, na China ou na Índia, mas sem o futuro conjugal. Uma cerimônia infinda, como no filme “Mas não se matam cavalos?”, em que o casal que ficar mais tempo dançando ganha um milhão de reais, ou melhor, ganha apenas um real. Um cortejo de casais que acabam de se conhecer, que se apaixonam à primeira vista e que vivem continuamente em estado de promessa, sem jamais se casar, para assim poderem ser felizes para sempre. Casais já casados há muito tempo, que se encontram todos num lugar impossível, para celebrar o que nunca existiu. Nunca casar-se e trocar de parceiro consecutivamente, numa quadrilha confinada, em que ternos deslocam grinaldas e véus raspam nas lapelas. Sonhar com o parceiro seguinte a cada troca, divisando orgias inumeráveis por cima de um tapete exíguo. Escapar dos limites do tapete e sair em errância pelo deserto, até que um grupo de beduínos nos sequestre e mate.
O que é uma fila? Uma fila é um fio organizado de pessoas com um mesmo objetivo, que aguardam sua vez de atingi-lo. A vida é uma fila para a morte. Algumas definições de liberdade dizem que “a liberdade de um começa quando termina a do outro”. As mães dizem isso para os filhos. Você pode fazer o que quiser, contanto que não atrapalhe nem machuque ninguém. Fique na fila; não fure a fila jamais. Imagino uma fila imensa para ir à praia, por exemplo. Tão, mas tão grande e tão, mas tão organizada, que ninguém consegue chegar ao mar, porque a praia está inteiramente ocupada por filas. Não atrapalho ninguém e muito menos a mim; com medo de interromper a liberdade do outro, não desfruto da minha. “Par delicatésse j’ai perdu ma vie”. Cuidado para não escorregar em cascas de banana, dessas que se distribuem pela vida. Está bem, sempre vou tomar cuidado e não vou escorregar. Caminho olhando sempre para baixo, atento a qualquer possibilidade de queda ou de um escorregão. Se eu escorregar, todos vão olhar e rir de mim. Para escorregar, é preciso um lugar propício. Por que não existem escorregadores para adultos espalhados pela cidade? Balanços, gira-gira, trepa-trepa?
Todos se postam como na Santa Ceia, em atitude de enlevo e contemplação, em homenagem aos filhos do Homem, que cacarejam inebriados de vinho e sangue. Todos bebem do vinho: esse é meu sangue, eles dirão. Todos comem as penas: essa é minha carne. Sangue do meu sangue e carne da minha carne, depois do sacrifício, eles se distribuirão pela terra marchando, em estado de continência permanente, parando aqui e ali para descansar, quando programarão novas rinhas. Riem os soldados do senhor, preparados para construir a igreja, pedra inaugural de um templo que só crescerá, ocupando todos os cantos do mundo, em rituais diários onde fieis beberão do meu sangue e comerão da minha carne. Em cada quintal, em cada varanda, em cada sacada se formará uma concentração para a guerra. Todos estarão em permanente estado de prontidão para quando o Messias voltar, quando então as hecatombes serão não de dois, mas de centenas de milhares de aves cacarejantes.
Adeus. Acenam a despedida os jovens que vão sendo engolidos pelo deserto, pelo espaço e pelo futuro. Adeus, vamos nos encaminhando para o amanhã, que se encontra ali, embaixo da terra, num tempo que nos consome diariamente exigindo que o alcancemos. Adeus dias desocupados da juventude: estamos sendo sugados para o porvir, pois somos o futuro das nações e de nós depende o progresso. Estamos caminhando juntos para o futuro melhor que vocês um dia nos prometeram. Nossos olhos divisam, lá longe, o horizonte infinito: a possibilidade sonhada de um dia escaparmos daqui. Adeus horizonte. Como na “Casa Tomada”, perdemos as chaves e nosso espaço diminui a cada dia. Nesse país é proibido ser jovem e juntar as letras de macarrão. Só quem pode ser jovem são os mais velhos, que comem cremes, cirurgias, pilates e pão sem glúten. A nós resta envelhecer. Adeus, letras de macarrão.