Um rizoma feminino, territorial e necessário – 4plus, o coletivo de fotógrafas armênias
Empoderamento feminino. Um tema urgente de discussão, reflexão e, sobretudo, de ações que coloquem-o em prática, principalmente em sociedades com forte traço patriarcal e machista como é o caso da República da Armênia. Localizada no Cáucaso e cercada por montanhas que a separa e protege de seus vizinhos Irã, Geórgia, Turquia e Azerbaijão, a Armênia tem no machismo e patriarcado partes de um rizoma que se emaranha com a territorialidade, nacionalismo e sociedade. Apesar disso, entre perdas territoriais, patrimoniais e humanas, a Armênia sempre se reinventa, renasce. Isso pode ser apenas uma opinião pessoal, já que minha vida está bastante ligada ao país e suas montanhas. Uma coisa sempre me chama a atenção quando olho para a Armênia: a força do indivíduo e a vontade por mudança, por progresso,por igualdade.
O pequeno país incrustado nas montanhas do Cáucaso é composto por descendentes de sobreviventes de um genocídio – perpetrado pelo governo otomano durante a I Guerra – e remanescentes da menor das 15 repúblicas soviéticas. Nos últimos anos de regime soviético, além de todo o caos do colapso da URSS, os armênios precisaram lutar uma guerra contra o vizinho Azerbaijão e se reconstruir após um terremoto que tirou a vida de 25 mil pessoas e deixou meio milhão sem casa.
Os anos 1990 tampouco foram fáceis. Arrasada economicamente, em guerra com o Azerbaijão e sem relações diplomáticas com a Turquia, a Armênia dependia de ajuda externa e de sua numerosa diáspora. Enquanto isso, a sociedade se agarrava em suas tradições, valores e costumes, reforçando o papel do homem como provedor e protetor da família. Na política, as oligarquias ligadas às forças armadas e a Moscou reforçaram o poder do patriarcado na Armênia e apenas em 2018 foram ameaçadas por uma revolução popular que promoveu renovação política e novo aporte de ideias e visões que surgiram na Armênia a partir dos anos 2010.
Fundada em 2012, o coletivo de fotógrafas armênias “4 plus” tem como principal objetivo desenvolver a fotografia documental e empoderar mulheres na Armênia, visando fornecer diferentes olhares para uma narrativa da vida cotidiana que é comumente encharcada de patriarcado. Para isso, o coletivo capacita não só as fotógrafas e mulheres em geral, mas também todas aquelas cujos direitos são violados, trazendo suas questões à luz. Esse tem sido o coração do coletivo. Cada integrante tem o compromisso de documentar questões sociais, violações de direitos humanos e potencializar particularidades culturais por muitos anos.
Embora a Armênia tenha experimentado algum progresso em direção à igualdade de gênero, o país ainda enfrenta muitos desafios nesse quesito: violência doméstica, falta de acesso à educação de qualidade para mulheres mais jovens, tolerância e respeito à comunidade LGBT QI+, aborto seletivo no caso do bebê não ser do gênero masculino, adoção de bebês recém-nascidos do gênero feminino à revelia da mãe, infecção de mulheres pelo vírus HIV a partir de relações sexuais com os seus maridos, além dos problemas fronteiriços que causam quase diariamente a morte de jovens armênios.
Hoje, com Nazik Armenakyan, Anahit Hayrapetyan, Nelli Shishmanyan e Piruza Khalapyan, o coletivo organiza workshops, palestras e publicações em suas plataformas, dando ênfase a problemáticas culturais, sem pudor. Também organizam publicações físicas que circulem pelo mundo mostrando um pouco a realidade poética e também dura do país. A ideia é que a plataforma estimule a produção fotográfica nos quatro cantos do país, tendo mulheres majoritariamente na área documental e homens, em sua maioria, na cena comercial, como disse-me Nazik, com quem bati um papo há algumas semanas.
Por tratarem de temas que ainda são tabus na sociedade armênia, as mulheres do 4 plus já passaram por algumas situações delicadas. Nazik, por exemplo, passou anos fotografando a cena das transexuais na Armênia, mas teve que exibir as fotos a portas fechadas, sem a presença das próprias personagens das histórias que ela contava, por medo da reação da sociedade civil e de algumas instituições reacionárias na época. Isso ocorreu em 2013 e houve alguma melhora desde então, mas, ainda hoje existem desafios a serem superados. Quando morei no país, eu acompanhei o julgamento de um caso de violência doméstica, junto a uma ONG dedicada ao cuidado da mulher. Naquele caso, o marido agressor não foi condenado, o que gerou uma grande comoção e mobilização da população do vilarejo onde o crime ocorreu na frente do tribunal. É fundamental que as vozes das mulheres armênias sejam ouvidas para lutar contra essa e tantas outras injustiças e violências.
Nazik me conta ainda que a cena da fotografia está em ascensão no país, com mais olhares atentos, curiosos e na busca de trazer a tona um retrato do país por imagens. Além disso, há mais pessoas dedicadas a construir espaços destinados à fotografia – como a Mirzoyan Library, por exemplo – e outras galerias que, kamats kamats (“devagar, devagarinho”), têm tomado forma. Essas artistas, superando as desavenças geopolíticas, mantêm boas relações com artistas dos vizinhos Turquia, e Geórgia e almejam construir uma relação com os iranianos.
As mulheres do 4 plus oferecem um retrato íntimo da vida cotidiana no país com imagens super profundas, poéticas, esteticamente bem-resolvidas e atravessadas por histórias e personagens. “Claro que sempre beiramos temas com alguma tensão, que têm a potência de impactar e permitir a reflexão da sociedade, como o trabalho de Piruza, que retratou mulheres de um vilarejo na fronteira com o Azerbaijão, que sofre eternamente com todas as questões de uma guerra”, afirma Nazik. As imagens fomentam a indagação: o que é ser mulher em uma situação dessas?
Nos últimos dois anos, elas desenvolveram o projeto persona, no qual cada fotógrafa acompanhou por um tempo mulheres fortes da sociedade armênia. “Foi um projeto bastante impactante para a sociedade, mostrando um pouco do poder de cada personagem feminina dessa história que o país conta”, contou-me Nazik. Outra grande conquista do coletivo é traduzir para o armênio – ainda neste ano – o livro “Sobre fotografia” de Walter Benjamin, obra de referência da linguagem fotográfica.
Com papel fundamental na narrativa que o país constrói entre cicatrizes e conquistas, essas mulheres estão marcando a história com seus olhares extremamente apurados, cuidadosos e com a vontade de comunicar e provocar mudança, respeito e atenção. “Fotografia é fotografia, sabe?! Se ela é forte e comunica, terá seu lugar aqui ou no mundo. Não importa.” Nazik tem razão. Obrigada 4 Plus por trazerem temas, mulheres e reflexões que fogem do estereótipo da Armênia imaginada, santificada e cristalizada pelo patriarcado que, com medo do presente instável e futuro incerto, apega-se ao controle dos corpos e vozes das mulheres para ter uma ilusão de segurança e proteção. O que o patriarcado ignora – ou finge não saber – é que se há solução possível para a Armênia, ela passa pelas mãos das mulheres.