Os anos de escuridão do Líbano e suas memórias – a obra de Lamia Joreige
“Nós só temos dois caminhos: apoiar todos os movimentos das revoluções e acreditar que o apoio da comunidade internacional e da comunidade local ao Líbano crescerão, ou vamos ser obrigados a deixá-lo e vê-lo se tornar o país da escuridão. Se o Hezzbollah continuar, não existe esperança. Com o balanço do poder desigual e falso de hoje, não existe esperança. É preciso pessoas indo às ruas, apoio internacional, reformas políticas, socias e econômicas.”
Foi assim que terminou minha conversa com a artista libanesa multimídia Lamia Joreige, parte da geração pós-guerra civil libanesa, na última terça-feira. Seu trabalho, entre fotografias, vídeos, desenhos, pinturas e instalações, explora, direta e indiretamente, o trauma da guerra civil (1975 a 1990) com ênfase em sua cidade natal, Beirute. Em 2011, o trabalho “Objetos de Guerra” – uma série de depoimentos em vídeo sobre a guerra – foi a primeira grande obra de arte libanesa adquirida pela Tate Modern, em Londres. Ela representou o país, junto a outros artistas, na Bienal de Veneza em 2007; participou de exposições na Serpentine Gallery, Pompidou, Maxxi e expos seus filmes em diferentes festivais pelo mundo.
“O país que você descobriu em 2017, não existe mais e talvez nunca mais exista, Cassiana. Depois da crise, da revolução e da explosão, tudo mudou. Existe uma atmosfera deprimente”, diz Lamia, referindo-se a minha viagem ao Líbano há 3 anos.
Ela sempre traz em suas obras a memória. Uma memória individual e coletiva, numa tentativa de entender as possíveis narrativas durante a guerra. Ela, que quase sempre precisa de um tempo para decantar os acontecimentos, sem agir no momento clímax, nunca acreditou que a guerra acabou de vez: “Acho que agora terminaram as batalhas, mas não a guerra”. Durante as entrevistas de “Objetos de Guerra”, muitos personagens voltavam a 1975 em uma narrativa com inúmeras possibilidades de lembranças e infinitas possibilidades de esquecimento.
Vivendo e trabalhando em um território político, com tudo acontecendo o tempo todo, tenta criar e testemunhar de uma forma poética toda a carga libanesa, numa tentativa de transcender a realidade e criar narrativas com todas as marcas da história nesse território e nela mesma.
Parece que o Líbano está o tempo todo na mudança, na expectativa de mais uma tragédia, de mais uma cicatriz, de mais uma superação. Carrega no território, nos corpos, nas construções e destruições uma história de guerras, de refugiados, de batalhas, de perdas e mais perdas. Espremido entre a Síria e o Mediterrâneo, o Líbano ainda precisou enfrentar a ocupação israelense no Sul de seu território entre 1985 e 2000, o que ainda é motivo de ressentimento por parte dos libaneses com o Estado judeu, com o qual não mantém relações diplomáticas. Além de todas as dificuldades geopolíticas, o Líbano recebe, historicamente, refugiados de outros conflitos do Oriente Médio: armênios sobreviventes do genocídio perpetrado pelo Império Otomano a partir de 1915, palestinos que fugiram do que eles chamam de “Nakba“ nos anos 1940, além de um milhão e meio de sírios que foram expulsos do país vizinho por conta das ações do Estado Islâmico.
E claro, ainda há a pandemia. Sem poder confiar no próprio governo e sem transparência dos dados sobre a Covid-19, a população do Líbano decidiu ficar em casa, mesmo antes do lockdown decretado pelas autoridades. Quando o aeroporto de Beirute foi fechado os casos diminuíram bastante, mas a reabertura em julho fez com que voltassem a subir. O confinamento aumentou a insatisfação com o governo, quando, além do lockdown, um toque de recolher foi imposto, proibindo as pessoas de circularem entre 9 da noite e 5 da manhã: “Agora eles querem fazer um lockdown total… É difícil entender o que o governo quer. Também declararam estado de emergência com militares nas ruas por algumas semanas, o que permite que eles criem e sigam regras específicas que não haviam antes, na tentativa de calar os protestos”, contou-me Lamia. Seria uma preocupação com o Líbano ou uma chance de abuso de poder na tentativa de vetar e silenciar algumas manifestações contra eles? Não seria de se espantar, visto que outros governos aproveitaram da pandemia para ampliar vocações autortirárias e passar medidas antidemocráticas, aproveitando a dificuldade adicional gerada pela Covid-19 da sociedade civil se organizar em protestos e manifestações.
Muitos artistas tem tratado da crise política no Líbano nos últimos 20 anos, mas agora a siuação parece estar mais escancarada, sobretudo nas relações entre política, religiões e oligarquias. Segundo ela, vários líderes de milícias que estavam na guerra, criminosos, hoje são líderes políticos. “Quando a explosão aconteceu em 4 de agosto, foi uma consequência de tudo isso. A negligência e a incompetência de lidar com um problema que eles já sabiam… e o presidente do nosso país insiste em dizer que não tem culpa nenhuma.”
A explosão no porto de Beirute fomentou o quarto capítulo da série Under-Writing Beirut, que começou em 2013. Sua ideia é trazer para esse novo capítulo o porto de Beirute, que faz parte da história do Líbano, de tantas chegadas e partidas, sobre o qual Lamia já investigava e tateava antes da explosão. Sua galeria estava presente no porto e foi destruída. O capítulo 1 – Mathaf (2013) explorou temas relacionados a guerra e ao Museu Nacional; o capítulo 2 – Nahr (2013-2016) ligado ao rio de Beirute e a urbanização; o capítulo 3 – Ouzai (2017-2018) com a superorganização e extensão do sul da cidade e na construção de casas irregulares.
A série de impressões “The End Of…” usa fotomontagens com imagens de Super8 e notas escritas ao longo dos anos. São reminiscências de uma história com lacunas. O processo de memória, no registro e apagamento de tudo, percebido na textura física de cada imagem. Um trabalho que visa discutir violência, perda e desilusão. As paisagens carregam em si vivências de tensões e conflitos.
Já em “Je d’histoires” apresentado na Bienal de Veneza, o espectador é convidado a construir sua própria história visual a partir do conjunto de imagens de vídeo, textos e músicas, tornando-se parte do processo da obra, renovando-a a cada vez. Nos vídeos tem paisagens urbanas de Beirute encontradas em Super 8, cartas trocadas durante a guerra e melodias líricas. A reação de cada espectador foi coletada, transformada em um algoritmo e convertida em som, que foi integrado na sequência da obra posteriormente.
Nos últimos meses ela ganhou uma bolsa do “Institute for Ideas and Imagination” da Columbia University, em Paris e, quando puder ir à capital francesa, Lamia seguirá em sua pesquisa que faz uma analogia ao período do fim da Primeira Guerra Mundial com o que está acontecendo na contemporaneidade desde o Início da Guerra da Síria em 2011, para explorar um ponto de vista geográfico, político e territorial de como eventos tão sombrios afetam territórios e seus indivíduos. Lamia Joreige é uma artista resiliente e forte, como o cedro do Líbano. Tragédia após tragédia, eles vão buscar novas formas de existir e resistir.