Um mar diluído – Ensaio Palavra-Imagem com Jeferson Tenório e Maria Campos-Pons
Convidei o escritor Jeferson Tenório para esta edicão do Ensaio Palavra-Imagem, que me sugeriu as imagens da artista cubana Maria Magdalena Campos-Pons. Tenório acaba de lançar, pela Companhia das Letras, “O Avesso da Pele”, seu terceiro romance, que aborda as complexas relações raciais, a identidade, a violência e a negritude. Campos-Pons, evoca em sua obra completamente autobiográfica, temas de história, memória, gênero, religião e ancestralidade. Já participou da Bienal de Veneza, da Documenta, teve uma individual no Museu de Arte de Moderna de Nova Iorque, obra no Guggenheim…. A junção desses dois grandes nomes só podia ser de uma potência bonita de se ver/ler.
Um mar diluído e a memória das mais velhas
A gente esquece é para se consertar de Deus. A simplicidade da morte me assusta e a complexidade da vida me resgata. Eu tenho fios. Um emaranhado de fios. Vou me tecendo e agora penso nos que foram antes de. Penso nos que foram antes do. Nos que vieram antes da. O azul me absolve de Deus e é no aprendizado da perda que desencontro o chão. Há uma viagem a ser feita e é Logum Edé quem avisa. Loci, loci Logum! Loci Logum. A gira começa. A roda refaz o caminho até aqui. Ijexá e travessia. No meu corpo Deus se desmancha. E na memória atlântica Havana é um tempo. Maria Campos-Pons é um tempo que se ergue. A gira é a gira. Um Ofá apontado para o céu. Oxóssi. A chegada das mais velhas põe o mundo nos eixos. A sina de consertá-lo já não é um fardo porque agora Sísifo sorri. Na memória das mais velhas, Deus é apenas um menino com os pés sujos. Ele vai aprender com o chão, elas dizem. Em novelos de lembranças se desenrolam as histórias atadas a um mar diluído. Mar morto. Sucumbido entre o ar e o sal. Ao falar delas retorno a mim. Um Eu espalhado e recuperado. A vida individual e íntima alicerçada na coletividade das tranças. Tramadas uma a uma com silêncio das mãos. Viver não é perigoso. Viver sozinho é que é, elas dizem e voltam a tecer. Na coletividade há um atlântico reencontrado. Um repouso nas alegrias e na lucidez de um sonho diaspórico. A gira segue porque precisa. Bará Agelú traz as chaves e o segredo do mundo é revelado. Maria Campos-Pons e as flutuações de si regressam em cores de sangue e céu e há nelas o intervalo de angústias. Na memória se perde. Na memória se morre. Na memória se refaz. Reconstrução pelos fios e pelos afetos ferozes. A delicadeza nos redime e põe a diáspora em movimento. A gente lembra é para se consertar da vida.