Um corpo multiverso e presente – a obra de Carla Chaim
“A mão que escreve parece separar-se do corpo e prolongar-se em liberdade bem distante do cérebro, que também se separa do corpo, que por sua vez parece tornar-se aéreo e observar, bem do alto, as frases inesperadas que saem da caneta”
Trecho de um texto de Marinetti, publicado em 1912, enviado pela artista.
Um corpo no aqui e no agora. Uma ação que provoca um acontecer espontâneo, sem se deter na perfeição do movimento, permitindo o acaso. Mesmo quando se propõe a repetir uma ação para alguma de suas obras, é sempre no primeiro take que encontra o eixo de seus movimentos. Carla Chaim carrega em seu corpo o instrumento de um desenho, de um vestígio em coreografias espontâneas.
Seu corpo e sua mente não são unidades individuais. Se funcionassem separados, talvez não chegassem as epifanias corpóreas pautadas pelo improviso que ela busca, longe da razão. A dicotomia entre um e outro não existe, funcionam como uma dupla de ação em suas fotografias, vídeos ou desenhos, carregados de uma geometria precisa, com um domínio da tradição estética do modernismo brasileiro.
Um trabalho que passa pelo instável, numa fruição com o espaço que habita, longe do corpo performático, que veste máscaras, na tentativa de adquirir outro corpo.
“A máscara, a tatuagem e a pintura instalam o corpo em outro espaço, fazem-no entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem deste corpo um fragmento de espaço imaginário que se comunicará com o universo das divindades ou com o universo do outro.”Michel Foucault, “o corpo utópico”.
Carla Chaim traz nas impressões corpóreas traços circenses, da dança e das artes plásticas e explora o corpo na sua imperfeição, numa busca não exata de cada gesto, sem tantas regras rígidas. Isso não significa ausência de metodologia, pois parte de seu trabalho é puramente o processo, o estudo do entre e do meio, de cada começo e fim. Mas um corpo como tensionador do espaço, seja em movimentos repetitivos ou no simples ato de dobrar um papel.
Em seus últimos trabalhos, sustenta um corpo mais agressivo, com questões políticas, como num ato de vomitar o que não foi possível digerir, muito pertinente ao momento atual do Brasil e do mundo. “O seu corpo, querendo ou não dá uma desenfreada”, afinal, não é o corpo o primeiro a sentir o espaço a sua volta? Não é o corpo que sintomatiza antes da palavra? Que corpo é esse que se sustenta e se locomove pelo espaço? Que afeta e é afetado mutuamente? Essas e tantas outras questões permeiam a pesquisa de Chaim.
A resposta talvez nunca venha, já que falamos de impermanência, de acontecimentos espontâneos e contínuos. Quando uma resposta vier, já traz outra questão. Em algumas obras, o seu caminhar é o gesto sem finalidade que exige grandes esforços para não chegar a lugar nenhum, numa experiência do próprio “entre” do começo e do fim da ação. Em outros, há o corpo como vestígio e o corpo presente, como um instrumento para desenhar, proporcionando uma nova paisagem. Um corpo acionado como objeto construindo sua gravura, que permite mapear o corpo, numa observação que se completa no espectador.
“O corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino.” Michel Foucualt, “Corpo Utópico”.
Carla Chaim transita em terrenos movediços que se transformam com o corpo e vice-versa. Um corpo presente, que se move na fluidez do risco, da linha e da pintura, numa multiplicidade de possibilidades de agir e reagir ao espaço-tempo. O tempo de ação do corpo afeta diretamente a obra, ela me diz. Um movimento que se repete por n minutos e se transforma, se embaralha, em um constante devir.
Para a SP-Arte – que nesta edição acontece online – Carla apresenta obras que acusam uma plasticidade do luto. Em busca de novos materiais e novas significações, com as escalas de tons de cinza, ela traz esse corpo vestígio onde os gestos estão refletidos no papel carbono, indicando um tempo passado de ação e, nos outros papeis, um tempo presente/futuro como uma corporeidade fixada em forma de desenho.
Que corpo é esse que vive hoje? Que corpo é esse que viverá depois de tantos hojes instáveis, incompreensíveis e anormais? Quais as marcas que ela e nós carregaremos em nossos gestos no amanhã? Que parte de nós será preciso que morra e qual será necessária manter-se viva?