Os Incapturáveis – Ensaio Palavra-Imagem com Aline Bei e Maria Lai

Cassiana Der Haroutiounian

Convidei a escritora paulistana Aline Bei para participar deste Ensaio Palavra-Imagem inspirada pelas imagens da artista italiana Maria Lai. Bei é autora do belíssimo “O peso da pássaro morto”, ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura em 2018, na categoria “melhor romance de autor com menos de 40 anos”, que foi adaptado para o teatro e está em cartaz até dia 27. Amanhã ela lançará o conto “Rua sem saída”. Lai (1919-2013) é, por sua vez, uma das artistas mais importantes da arte contemporânea na Itália, com uma obra extremamente sensível e poética. Ela teve trabalhos expostos na Bienal de Veneza de 2017 e na Documenta 14 do mesmo ano. Juntar as duas só podia resultar nessa lindeza!

OS INCAPTURÁVEIS

eu estava voltando de uma noite difícil, dirigia escutando Bach

e a chuva

na cidade, no meu peito

me sentia devastada, ainda que a iniciativa do término tenha vindo genuinamente de mim. acontece que

ver o Mauro pegar o seu paletó na cadeira

vestir cabisbaixo

as minhas palavras dizendo chega

acabou se tornando bem mais pesado do que nos movimentos de término que fiz passo a passo

dentro da minha cabeça, um pouco antes do jantar.

ali, no corpo de Mauro se afastando (ele ainda deu um último gole na taça de vinho e me Olhou) ali eu perdia também

uma boa parte de mim.

quando uma pessoa vai embora, ela leva consigo tudo o que viu

e o choro nunca é um exagero

porque uma parte de nós chora pela despedida da pessoa

e a outra

pela despedida de quem você foi ao lado daquela pessoa.

não, eu nunca amei o Mauro.

mas ele era alguém que estava por perto

e isso

não é pouco, agora quando eu acender as luzes do meu apartamento (a vida por dentro das casas sempre me intrigou, como se guardassem uma verdade que não acesso, como se soubessem acender a luz melhor que eu) ninguém estará

em lugar nenhum.

o Mauro costumava morar

pelos cantos da minha casa, sempre mendigando

algum afeto

e nos meus dias mais vulneráveis

(foram tantos!)

isso me fazia muito bem.

mas não era amor

e eu estava disposta a ser honesta, pelo menos uma vez na vida.

ficar sozinha e quebrada, no entanto não mentir, ou pelo menos não mentir quando estamos falando de

Amor. eu quero viver esse Sentimento e pra isso eu precisava fechar algumas portas, mas a verdade é que, por hora, perder o Mauro me transformou em um trapo, não quero descontar isso que sinto na bebida

mas sei que acabarei descontando

em tudo o que me fizer mal, pelo menos nos primeiros meses.

virei o carro

na rua da capela há muito sem missa porque

a gruta, devido ao mau tempo, estava alagada

assim como os nossos corações.

foi quando o meu olho cruzou

com os olhos de um homem que estava parado na calçada

debaixo de um guarda chuva e um cigarro na mão.

por um momento, achei que ele admirava qualquer coisa na noite tão úmida e logo voltaria a caminhar, mas ele permaneceu imóvel, uma estátua

e é assim que o tal homem nasce aos meus olhos, não é injusto? a gente consagrar a existência de uma pessoa só quando pousamos o olhar nela? o dele tão Penetrante

quanto a luz do cigarro aceso

o que este homem estava fazendo debaixo de um temporal?

bem, ele poderia perguntar o mesmo de mim.

mas eu estou dentro do carro

e ele decidiu caminhar por dentro da tempestade, ainda que com um guarda chuva

e um cigarro, seus Alívios, é o que fazemos todos os dias

ao escolher viver.

ele tinha os cabelos compridos

e negros, carregava a própria história no corpo

silenciosamente, como um livro.

passo devagar por ele

que segue parado, debaixo da chuva, será que está tendo uma ideia? lembrando de algo. morreria

em quanto tempo? por outra bobagem que não o cigarro

ou é mesmo o alívio quem vai lhe matar?

e o silêncio crescia

ao redor das minhas perguntas

sem respostas, pois

é exatamente nesse abandono que se unem os corpos

sejam eles conhecidos ou

desconhecidos por nós

apesar que

até mesmo o nosso corpo

meu deus, quantas vezes ele nos parece um completo desconhecido? penso olhando para o meu rosto sem Mauro

bem de perto

no retrovisor.