‘Sangue fotografa bem?’ – Ensaio Palavra-Imagem com Chico Felitti e Lukasz Wierzbowski

Cassiana Der Haroutiounian

Nesta edição do Ensaio Palavra-Imagem, o escritor e jornalista Chico Felitti se deixou atravessar pelas imagens do polonês Lukasz Wierzbowski , criando esse texto que é quase o roteiro de um curta-metragem que beira o absurdo e tira-nos o ar. Chico é autor dos livros “Ricardo & Vânia”, “A Casa”, “Mulher Maravilha” e ganhador dos prêmios Petrobrás e Comunique-se de reportagem. Completamente analógico, Lukasz vive numa pequena cidade no sul da Polônia, longe do mundo fancy da moda. Ele faz parte da chamada nova “estética polonesa” e atrai as atenções no circuito Nova Iorque-Paris.

“Vai ser a campanha mais foda do mundo!”

Disse o diretor de marketing hétero de meia-idade da grife italiana, numa sala de reunião que era em Milão, mas poderia ser em Nova York, Tóquio ou São Paulo. “Nós vamos fotografar a coleção e vamos fotografar ela com a verdade.” Por “verdade”, ele explicou o que queria dizer: as roupas da temporada seriam fotografadas em meio a acidentes reais de carro. “Mas sem mostrar cadáver”, disse o diretor de marketing, para mostrar que tinha senso crítico e percepção moral. Um silêncio viscoso pareceu sugar o oxigênio que havia na sala de reunião. Ninguém reagiu à ideia, e o diretor hétero de meia-idade da grife italiana interpretou o silêncio como uma reação inegável à sua genialidade.

Duas semanas depois, o germe da idéia, que não foi abortada, acabou se tornando realidade. A mando do diretor hétero de meia-idade, a equipe de marketing contratou  duas modelos albanesas menores de idade e magras. Muito magras. “Elas são cadavéricas”, falou em italiano um estagiário para o outro. “Foi exatamente o briefing do diretor”, respondeu o outro. Durante o casting, esses mesmos estagiários pediram que elas se deitassem no chão com as duas mãos espalmadas sobre o peito e fechassem os olhos. Elas acharam estranho, mas seguiram as ordens e conseguiram o trabalho. As modelos não tinham certeza do que estavam fazendo.

Assim que chegaram, as duas foram levadas até o banheiro da diretoria, onde um maquiador renomado as esperava com uma mala de produtos de beleza que era mais pesada que as duas somadas. O homem trabalhou com suas mãos sobre os rostos delas por duas horas. E o resultado final foram rostos pálidos, como se tivessem ordenhado todo o rosto da face, mas as unhas e os lábios no tom escarlate que a carne teria se o sangue se concentrasse só ali. O maquiador não tinha certeza do que estava fazendo, apenas seguiu ordens.

A equipe saiu para a rua quando o sol de verão começava a se pôr, às dez para as dez da noite. O diretor hétero de meia-idade subornou dois amigos carabinieri e era informado por Whatsapp dos acidentes que aconteciam nas estradas da Lombardia. Ia a ambulância para resgatar qualquer carne que ainda estivesse viva entre as ferragens. E ia a van da marca, para capturar “a verdade” que depois seria estampada em outdoors e páginas duplas de revistas de moda.

Assim, antes da meia-noite, eles chegavam à primeira locação. E locação era um eufemismo para cena de desastre. A van parou numa estrada de girassóis ao lado de um Fiat Cinquecento branco que mais parecia um fusca depois que seu capô foi dobrado em dois pelo impacto com um poste.

“Deita! Deita do lado do carro!”, disse o diretor, acostumado a dirigir. As modelos deitaram no acostamento. “Agora deita, deita em cima do capô, de barriga pra baixo”, dirigiu o diretor. Enquanto a modelo mais velha deitou com a bochecha no metal ainda quente do carro, a modelo um mês mais jovem que a outra colocou a mão no vidro, espatifado como se fosse uma teia de aranha. O fotógrafo clicou a imagem com o dedo mais mole que o mundo da moda já viu. Focou no detalhe dos dedos atravessando o vidro, mais por decência do que por tino artístico.

A trupe ficou uma hora na cena –ou 40 minutos a mais que a ambulância. Em um determinado momento, o diretor perguntou para o maquiador: “Sangue fotografa bem ou vai parecer merda na impressão?”.

Susan Sontag ou alguma outra pessoa genial teria tomos para escrever sobre a cena. Mas o diretor de marketing de uma marca de moda italiana resume tudo o que pensa: “Isso tá ficando muito foda!”, diz, enquanto as modelos mancham a estampa nervurada dos casacos de piqué deitando em cima de uma poça de sangue que se formou ao lado de uma Lamborghini amarela, já na terceira locação.

O diretor de marketing hétero de meia-idade da grife italiana tinha absoluta certeza do que estava fazendo.