‘A luz desliga, fica escuro’ – A obra política e multimídia de Dora Longo Bahia

Espiãs, 2020 (Foto: Ana Pigosso)
Cassiana Der Haroutiounian

Antígona: Começamos no escuro e o nascimento é a nossa morte.

Ismene: Quem disse isso?

Antígona: Hegel.

Ismene: Parece mais com Beckett.

Antígona: ele estava parafraseando Hegel.

Ismene: Acho que não.

Antígona: Quem quer que seja quem sejamos querida irmã, desde que nascemos dos males de Oidipous, que amargura, dor, desgosto, desgraça ou choque moral, fomos poupados?

A releitura de Antígona – a última parte da trilogia de Sófocles das chamadas obras de Tebas – feita pela escritora Anne Carson foi a mais acessada pela artista multimídia Dora Longo Bahia para a realização do seu terceiro filme “Antigonada”. Filmado em janeiro e atualmente em fase de finalização, o filme traz questões sobre Estado, mundo subjetivo, insurgências e revolução. Mas, principalmente, sobre o direito de enterrar e ser enterrado, sobre quem faz as leis do homem que não são as leis do Estado.

Detalhe de A Girl, A Gun – American Shot, 2015 (Foto: Edouard Fraipont)

A história de Antígona contém elementos que inspirariam revolucionárias e feministas ao longo dos séculos. Irmã de Ismênia e filha incestuosa de Édipo e Jocasta, ela luta para enterrar o irmão Polinice respeitando os rituais de passagem para que a alma não vagasse eternamente, correndo o risco dela mesma ser morta. Esta figura da mitologia grega atravessou o caminho de Dora Longo Bahia em um momento no qual a artista pensava sobre a ascensão do fascismo, o poder do Estado e as ondas de conservadorismo que surgem depois de uma crise. Refletir sobre o enterro do irmão de Antígona trouxe a Dora uma reflexão sobre os mortos durante a ditadura – 434 reconhecidos oficialmente, afora milhares de indígenas dizimados pelo projeto genocida desenvolvimentista do regime militar – e os muitos não identificados. Tantos corpos descobertos em valas clandestinas, sem nome, sem rostos, sem um “eu”, sem um “outro” para velá-lo, chorá-lo, lembrá-lo… De alguma maneira, aqueles tempos sombrios lembram o nosso momento atual, quando tantas vítimas da Covid-19 e do descaso do Estado estão sendo enterrados às pressas, muitos em valas comuns, numa tentativa desesperada de conter a disseminação da doença, também impedindo despedidas adequadas, velórios, lutos, abraços e lágrimas.

Frame do longa “Antigonada”, com a atriz Camila Mota como Antígona

Dora pensa e executa sua arte partindo de temas sempre urgentes e necessários para a sociedade, não sendo possível, segundo ela, ser artista e não deixar que todos os problemas que estamos vivendo não afete seu trabalho, seus dias, seus afetos. Ela se apropria da arte para dar voz e tornar público algum incômodo, inquietude e revolta da sociedade com o governo e com o Estado, com a clareza das tangências que existem de arte e política. Talvez ela e tantos outros artistas tenham a certeza, durante o processo criativo, que é impossível executar algum trabalho isento do momento que estamos vivendo no Brasil, em dias em que a liberdade está sendo destruída de forma explícita, sem parecer uma forma de alienação, mas uma forma de deixar em carne-viva as inquietudes políticas para comunicar, sem rodeios ou eufemismos.

Atualmente, Dora, junto do filósofo Vladimir Safatle, faz parte do “Grupo de ação”, que recorre à produção de imagens como forma de militância e protesto, tendo a estética como ferramenta de comunicação.

Espiãs, 2020 (Foto:Ana Pigosso)

Durante suas imersões de buscas na internet, nas quais que janelas vão se multiplicando na tela do computador, ela descobriu, por exemplo, a histórias de mulheres públicas – atrizes, cantoras, esportistas, estrelas da mídia, socialites – que trabalhavam disfarçadas para ajudar seus países ou suas causas, criando a série “Espiãs” que faz parte da  “We never Sleep” sendo inaugurada hoje na Kunsthalle Frankfurt, sob curadoria da brasileira Cristina Ricupero, com um importante grupo de artistas internacionais. A exposição traz uma reflexão sobre o fascínio com a espionagem, tocando em assuntos como vigilância e manipulação do povo.

A série de pinturas-objeto são retratos dessas personagens sobre mapas antigos da revista National Geographic. que mostram – em vermelho – os países envolvidos nos conflitos nos quais as espiãs atuaram, junto da pintura de uma arma utilizada à época e uma serigrafia em aço a partir de uma imagem documental produzida por um fotógrafo de guerra. Afinal, espionagem não deixa de ser uma desestruturação de um sistema de poder, certo?!

Frame do longa “Antigonada”

Para Longo Bahia discutir, por exemplo, arte e educação de forma isolada não faz sentido, já que uma atravessa a outra em um processo horizontal que implica em correr riscos, numa ação e reação do momento de discussão específico, de debate. Por isso, Dora que também é professora, em tempos completamente virtuais, mesmo causando discórdia entre seus alunos, não permite a gravação das aulas online e nem que elas sejam compartilhadas: “As aulas são espontâneas e tem uma emoção do momento. Uma palestra já é diferente.”

Série Campo Contracampo, 2015

O longa de Dora Longo Bahia, de baixo orçamento, foi feito em 4 planos-sequência com um take único possível, em duas diárias, foi pautado em um “tempo revolucionário”, conta-me ela. Um tempo no qual as câmeras estão sempre no meio e a cena é quem corre atrás da câmera, refletindo sobre o voltar para o mesmo lugar que nunca será mais o mesmo. Mas afinal, qual é esse lugar que habitamos hoje?

Vladimir Safatle no trecho final do longa Antigonada

O filme termina com um discurso de Tirésias, interpretado pelo filósofo Vladimir Safatle em um monitor:

Ser proletário pode significar, principalmente, vincular-se ao que não tem nome. Lembremos de Antígona e do seu gesto político por excelência, a saber, sua decisão de enterrar seu irmão, mesmo a despeito do decreto de Creonte, representante do poder de Estado. Não enterrar alguém é a figura mais clara do apagamento de nome e lugar. Séculos e séculos tentaram deslegitimar a natureza política de seu gesto, ao dizer que se tratava simplesmente da insistência nas relações de sangue no interior da família contra as leis da polis. Mas seu gesto era político porque ela não falava em nome de sua condição de irmã, de mulher, de representante dos interesses da família, de filha de Édipo, de cidadã de Tebas, em nome do seu lugar. Ela falava em nome do que fora expulso do convívio dos humanos. E por falar em nome do que não era mais humano, ela podia falar em nome dos deuses, pois só os deuses podem preservar o que os humanos apagam. É no que não é de hoje nem de ontem, no que não conhece a lei do Estado atual, que se encontra nossa imaginação política. Lembremos disto: não bastam revolta e crise, não bastam análise e crítica. Uma revolta é uma revolta é uma revolta e este retorno contínuo sobre si pode produzir apenas cansaço e, por fim, desejo de restauração. A crítica é a crítica é a crítica e este retorno contínuo sobre si pode produzir apenas melancolia e, por fim, derrisão aristocrática. Mas quando a revolta e a crítica são impulsos para a imaginação política, então não há mais tautologias.

 

Silêncio.