O mundo interrompe-se – Ensaio Palavra-Imagem com João Guilhoto e Wolfgang Tillmans

Cassiana Der Haroutiounian

Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, convidei o escritor português João Guilhoto a se inspirar com as imagens do fotógrafo alemão Wolfgang Tillmans. Guilhoto é autor do belíssimo “Livro das Aproximações”, no qual elabora com precisão matemática o sofrimento e o desamparo humano. Precursor da estética despojada e realista, Tillmans é conhecido por sua diversidade fotográfica e sua observação contínua do entorno. A combinação entre os dois é de uma lindeza só!

O espírito não está.

Sente-se,

mas não é aqui.

 

A geografia concentra

uma aura que se movimenta

para locais determinados.

 

O homem

que o faz movimentar

é um inculto sacerdote.

 

O movimento é cíclico

como as marés se repetem

na confirmação da morte.

 

Fugiu para

o vento do fogo da terra,

para a água doce e salgada.

 

O espírito aparece

na luz idílica que incide

na água por trás da montanha,

 

Na luz que brilha no relevo serpenteante das cordilheiras

num fulgor que cega,

 

na sombra mais escura

da noite

quando a lua se exibe,

 

no barulho, sem o maestro,

que se propaga no mundo

dos sons selvagens.

 

Não é humano

o espírito que se sente

nos corpos dos homens.

 

É a imaginação das sensações

de estarmos indiferentes

num outro mundo.

Ele diz:

pára e desvia-te;

junto a mim não ouves o mundo.

 

O mundo interrompe-se

ou tu interrompes o mundo

num ruído paralelo.

 

Só precisas de apurar um sentido,

mas nada irá alterar-se

na tua interrupção

 

que incita a parar

e a contemplares

a salvação num zumbido

de sal, num cheiro

de brisa, num grito

de onda.

 

Só não penses é que te irás salvar.

 

Os séculos estendem-se pelos Homens

equações que ecoam dos passos,

interrogações rebentando nas praias dos milénios,

como se o Homem se estendesse eternamente na areia

e perguntasse

É esta a solução misteriosa de Deus?

O coração não é maior que a onda

nem o mar mais pequeno que Deus

Temos a medida certa de uma vaga morta

rasto de espuma na areia molhada.

 

A sombra de Deus veste-me de uma cor ininterrupta

como se eu fosse feito de uma matéria suja

Só no escuro recobrava a minha exatidão

pois interdito de brilhar vivia para sempre

no esconderijo dos que se mostram.

E o eterno tenta completar-se no momento

que é sua parte incompleta

como o pássaro tenta completar-se no voo

o tigre no salto

a térmita na cabana à beira-mar

 

E nós que nos completamos na metade que desconhecemos de nós mesmos

como sombras de um movimento de animais sem tempo

Vemos nestes ossos, nesta carne, neste sangue

os pecados onde completamos a culpa

 

Ver no erro de não sermos o que somos é uma forma digna de nos completarmos

Completemo-nos então no segredo

Deus é pois metade que nos falta.