O tempo esculpido e depurado de Cao Guimarães
Entrar no mundo do cineasta e artista plástico mineiro Cao Guimarães é como sonhar com os olhos abertos, percorrendo um terreno arenoso e movediço, deixando-se despertar pelas sensações em mergulhos profundos da combinação entre palavra e imagem.
Paisagens criadas e inventadas pelos sons, numa presença-ausente e numa ausência-presente. O mundo de Cao atravessa os sentidos entre o ser e o não ser. Não se acomoda, mantendo um senso desperto para os acontecimentos do mundo, numa depuração do olhar, deixando para trás o menino mineiro barroco, para alinhar as arestas com conceitos mais minimalistas e da arte conceitual.
Em suas obras existe o acaso, sem seguir roteiros pré-estabelecidos. Um processo de imersão num pensamento fluido, observador e em movimento, disponível para que o inesperado aconteça, acreditando na montagem e nas trilhas sonoras para muitos de seus projetos tomarem a forma precisa junto aos afetos envolvidos. Um documentário que trata da realidade como a mais forte das ficções. Em seu trabalho, fica clara a reciprocidade entre o objeto criativo e o criador, numa troca horizontal, acessível e melódica.
Cao acessa e nos leva junto para os hiatos, as memórias, os vestígios e os rastros em suas obras. Às vezes, em cenas onde tudo acontece em um nada acontecendo, somos convidados a cruzar um portal do objetivo, deixando-nos levar por um subjetivo melódico, sensível e extremamente preciso. Mas o subjetivo pode ser preciso? Pelo menos pra mim, sim. Quando assisto os filmes – longas e curtas– de Cao, é como se o meu corpo e o meu pensar fossem levados a outra esfera: onírica, afetiva. Muitas obras podem ser vistas e escutadas ou apenas vistas e/ou escutadas. Existe um tempo dilatado em todas as suas obras no qual não há a urgência do acontecimento afobado, eufórico ou passageiro. É preciso tatear com calma e estar disposto a isso em tempos tão acelerados como o que vivemos.
“Depois do livro ‘histórias do não ver’, dessa quebra radical de reaprender a ver pelos outros sentidos, de olhos vendados, me aproximei dessa pedra no lago, onde o gesto é muito importante. Se existe um gesto político no meu trabalho, eu te diria que o mais político é lutar contra esse distanciamento do tempo da vida. Provoco o espectador a entrar no próprio tempo dele. Parece que a gente perdeu o poder do não acontecimento e quando você se permite a isso é muito potente”
Uma das coisas que sempre me fascinaram na obra de Cao Guimarães é essa conexão pulsante entre as artes plásticas e o cinema, que muitas vezes o mundo tende a separar. O cinema vem com o público, uma acessibilidade maior, uma tela grande e ponto, numa narrativa de começo meio e fim. Poder usar referências das artes plásticas para uma tela de cinema é extremamente potente. Um complementa o outro em sua obra.
“O cinema tem um terceiro elemento fundamental que é o tempo, uma escultura do tempo e tem todo um desenvolvimento nos anos 2000 muito intenso da minha relação com o cinema. De uma certa forma entrei nos dois nichos de uma vez. Meus primeiros trabalhos querendo ser cineasta me transformam em artista plástico. Quem me mostrou as formas de ver o mundo foi o cinema”.
Para ele existem os microdramas da forma – como no filme “Sopro”– nos quais a forma é uma narrativa em si. Esse transitar entre a arte e o cinema se nota, por exemplo, no filme Da janela do meu quarto, que foi para o festival de Cannes e faz parte do acervo do Moma. “O audiovisual no cinema é uma coisa. Para artes, além do tempo da imagem e do som, é preciso pensar no espaço. E em um museu você atravessa uma obra, não tem necessariamente que chegar no inicio ou no fim dela.
Em seu filme “Otto” – que nasceu de uma paixão inebriante e uma homenagem a seu primeiro filho – ele percebeu que aquela personagem, Flor, tinha uma força única e uma presença, não só na vida dele, mas na câmera, e passou a orbitar esse sol chamado mulher grávida desde a descoberta da gravidez em Paris até o nascimento em Belo Horizonte, buscando imagens ao seu redor como uma fagocitose e um multiplicar de células. O tema “gestação” impregna as imagens que nos rodeiam no tempo mais presente dela: a espera.
A galáxia de Cao Guimarães tem essa relação com o olhar e um desenvolvimento da percepção do mundo, da realidade, das coisas e dos sentidos. Como se forma e se dá essa relação e esse atravessamento de anos e anos de diferentes formas de capturas de imagens e de sons? Tudo é muito amplo, dinâmico e mutável nesse universo que foi atingido, desde a infância, por referências do avô-cineasta amador e preenchido por um arquivo de memórias infinitas que ele depura ao longo dos anos, revisitando seu acervo afetivo, material e imaginário.
Um andarilho por uma realidade absorvida, sentida na pele e como seu maior substrato: “Como se você imaginasse a realidade como se fosse a superfície de um lago: ou você se senta no barranco e contempla o lago (onde seus sentidos vão filtrar aquilo). A segunda forma é pegar uma pedra e jogar no lago, como um dispositivo para desorganizar essa realidade e a terceira forma é se lançar no lago e ser mais imersiva. E essas formas e ralação com esse lago, claro que elas se mesclam. E conforme o seu tempo vai passando, ficando mais velho, você trabalha a sua matéria prima e o seu lago – a sua realidade – não é mais só mundo físico, mas o mundo das lembranças”, devaneiou Cao, numa metáfora de sua vida.
Ao completar 50 anos, ele publicou o livro “Cao” pela extinta Cosac Naify. Antes era um artista a caça de imagens no mundo, rastreando, capturando, fazendo e transformando. Hoje está vasculhando suas arquivos para um projeto sobre amizade. “O arquivo é o vestígio da vida, como a memória é um dos vestígios do mundo. O fantasma também é um vestígio de alguma coisa que existiu e não existe mais. Uma ausência rodeada de presença. Uma ausência que é presente na nossa memória. O vestígio resiste.”
Isolado em um balneário uruguaio desde o início da pandemia, passa algumas horas do dia entre tarefas domésticas e podcasts filosóficos. “E a morte Cao? O que te faz pensar nela?” Pergunto.
“Sempre prefiro pensar a morte como transformação, como movimento. Passar para o nada ou virar outra coisa não me dá tanto medo quanto o ato de morrer, como já dizia Gilberto Gil. Gosto de pensar numa forma de simbiose com a natureza e poder relacionar isso num pensamento de que vou metamorfosear com o resto, com a natureza. Mesmo que o homem tente acabar com a natureza. A gente é natureza. “
E que natureza bonita e poética essa que você cria, Cao.