Esculpir-me como a uma cerca viva – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Martins Marques
Nesta edição do Ensaio Palavra-Imagem, convidei a escritora Ana Martins Marques para compartilhar alguns poemas do seu belíssimo e delicado “O livro dos jardins”, publicado para editora Quelônio. Ana é também autora de “Da arte das armadilhas” (Prêmio Biblioteca Nacional em 2012) e “O livro das semelhanças” (2015). A escritora adorou a ideia e sugeriu, para acompanhar seus poemas, fotografias da artista Livia Arnaut feitas no quintal dos avós maternos de Ana, que inspiraram os primeiros poemas do livro. Esse encontro não poderia ser mais afetivo!
Poemas d’O livro dos jardins
Também a mesa de ripa
as duas cadeiras descascadas
o velho banco de madeira
o regador
esquecido num canto
– todo o teu mobiliário
de jardim –
parecem ter nascido
aqui
e esperar apenas a primavera
para florir
Jardim francês
Esculpir-me
como a uma
cerca viva
erigir-me
severa e simétrica
construir-me em volta
de um palácio (vazio)
ou apenas costurar-me
em torno
do touro
Jardim inglês
Aprendi que tudo o que vive
tudo o que cresce
vive e cresce
contra o cálculo
desde então
alamedas amplas me dividem
não exatamente
ao meio
Mais valia, você sabe, plantar um jardim
do que escrever poemas sobre jardins.
Com o jardim você aprendeu o modo
como as coisas
anseiam ser
a concentração, a dispersão
a insistência
a alegria das novas
ocupações.
Chove sobre o jardim e você pensa:
o informe sobre as formas –
seu idioma de sintaxe retorcida
e palavras claras
– figuras
de folhagem.
Há flores de fumar
flores que devoram
insetos
flores que adornam a morte
com mais morte.
Mais valia, você sabe,
plantar um jardim.
Jardinzinho
Dente-
de-leão
língua-
de-vaca
mão-
de-onça
saia-
branca
coração-
negro
pé-
de-gato
orelha-
de-rato
unha-
de-cavalo
brinco-
de-princesa
cu-
de-cachorro
boca-
de-lobo
cabeça-
de-boi
umbigo-
de-vênus
chapéu-
de-sol
cabelo-
de-anjo
olho-
de-dragão
comigo-
ninguém-
pode
Um jardim para Ingeborg
Deste lado
da cerca do jardim
estamos.
Do outro lado
o mundo.
Dias inteiros
bateram contra a cerca
e vemos agora seus pedaços
entre os cogumelos podres
no chão.
Pássaros voltam do inverno
o tempo é de recomeço
e o jardim sobreviveu
ao moinho das estações.
Também nós
nos reerguemos
sobre as cinzas e as bombas e os cadáveres.
Nenhum jardim
é inocente.
Não se misturam
as coisas e as palavras
intraduzíveis umas pelas outras:
de nada vale colocar um seixo no lugar
de um nome que falta
ou adornar um verso
com uma flor de laranja.
O gelo que um dia destruiu o jardim
deixou intacto este poema.
Silenciosos
estranhos
andamos ladeando
a cerca
sentindo sobre os ombros
o peso novo do verão.
Usamos palavras antigas
pedra folha e noite.
Só nelas ainda
confiamos.
Um jardim para Laura
Do topo de ti
a cabeça
pensa
Esburacados
os mapas
dão para o lugar nenhum
da tua mesa de trabalho
Explora
o impensado
como quem cultiva
no jardim
o espaço entre as plantas