O mistério das coisas vivas – uma reflexão entre arte e natureza

“Uma obra de arte autêntica, assim como uma obra da natureza, permanece sempre infinita para o nosso entendimento; ela é contemplada, sentida, faz efeito, mas não pode ser propriamente conhecida, muito menos podem ser expressos em palavras sua essência, seu mérito” (GOETHE 2008: 117).

Sem título, 1986, Francisco Brennand (Foto: Edouard Fraipont)

A natureza abriga o imperfeito de forma grandiosa. O imperfeito é belo, mutável, atravessado pelo tempo, incontrolável pelo ser humano. A natureza sente, respira e é atravessada por cada ação humana. E parece que há anos temos deixado de prestar atenção a seus gritos – sim, porque foi preciso gritar – já que sussurrando não foi respeitada. Hoje, a natureza grita bem alto, já sangrando e lacrimejando, com inúmeras feridas abertas.

A galeria Bergamin & Gomide fez uma seleção de obras que partem de elementos naturais ou da observação de toda a diversidade característica do território brasileiro para seu stand na plataforma da Art Basel OVR (de 28 a 31 de outubro) com 14 artistas, referentes ao manguezal, por Frans Krajcberg (1921-2017); ao litoral, por Amélia Toledo (1926-2017); e à abundância mineral por meio de José Resende (1945), dentre outros. As obras são uma tentativa de provocar uma reflexão fundamental sobre esses tantos devires naturais e em trazer à tona como a arte pode comunicar, alertar, iluminar os conceitos e objetos naturais se ressignificados em uma pintura, uma escultura, uma fotografia…

Nor-Zen-Deste II, 1973, Montez Magno (Foto: Edouard Fraipont)

“Não me canso de dizer o quanto me ajuda na compreensão do trabalho de artistas e artesãos o conhecimento que penosamente adquiri das coisas da natureza, aquelas que o homem necessita como matéria-prima e as quais emprega em seu próprio proveito; do mesmo modo, também o conhecimento das montanhas, e das rochas que delas extraímos, representa para mim uma grande vantagem na arte.” (GOETHE 1999:92).

Segundo Antonia Bergamin, sócia da galeria, a ideia da exposição surgiu muito naturalmente, seguindo o fluxo que estamos nesse momento de ressignificar os nossos atos:  “O mercado de arte é também bastante agressivo e a gente tá se recusando a participar desse modelo tradicional, essa coisa super capitalista, em diálogos que não fazem sentido, tudo em prol de venda. Esse stand é muito menos comercial e com muito mais significado para a gente. Sempre tentamos ir na contramão desse movimento, mas especialmente nesses anos, atingimos uma máxima nessa questão. Não queremos que seja só a questão da venda, elas são importantíssimas, mas temos o dever e obrigação de trazer questões relevantes para dentro de um espaço expositivo… e fazendo de um jeito que demanda mais tempo, mais carinho e mais cuidado, o resultado chega mais rápido e melhor.”

Sem título, anos 1970, Frans Krajcberg (Foto: Edouard Fraipont)

Com as obras escolhidas, a galeria  convida o espectador a refletir sobre a origem de todos esses elementos, como eles se comportam e qual a importância de cada um deles em nossas vidas, num aprendizado constante de convivência harmoniosa com a natureza. Com todos os seus pequenos acontecimentos de milhares de anos, a natureza nos convida a ter uma relação com o tempo dilatado, esparramado. “Uma das questões é entender as simbologias todas de cada elemento que ela traz ao tirá-lo de sua concepção natural e levando para um trabalho de arte”, diz Antonia.

Nor-Zen-Deste II, 1973, Montez Magno (Foto: Edouard Fraipont)

“Pois, assim como na verdade encontramos a nossa própria limitação na incomensurabilidade da natureza e na insuficiência da nossa faculdade para tornar um padrão de medida proporcionado à avaliação estética da grandeza de seu domínio, e contudo também ao mesmo tempo encontramos em nossa faculdade da razão um outro padrão de medida não sensível, que tem sob si como unidade aquela própria infinitude e em confronto com o qual tudo na natureza é pequeno, por conseguinte encontramos em nosso ânimo uma superioridade sobre a própria natureza em sua incomensurabilidade; assim também o caráter irresistível de seu poder dá nos a conhecer, a nós considerados como entes da natureza, a nossa impotência física, mas descobre ao mesmo tempo uma faculdade de ajuizar-nos como independentes dela e uma superioridade sobre a natureza, sobre a qual se funda uma autoconservação de espécie totalmente diversa daquela que pode ser atacada e posta em perigo pela natureza fora de nós, com o que a humanidade em nossa pessoa não fica rebaixada, mesmo que o homem tivesse que sucumbir àquela força” (KANT 2005: 108).

Tacape/Tinhorão, 1974, José Resende (Foto: Edouard Fraipont)

Existe um movimento de exploração da natureza, das culturas, do nosso entorno em geral. Mas quando é que se pensa na troca? Assim como em tantos setores da economia, não se pode explorar sem devolver algo para a sociedade, certo?! Como não ser um indivíduo que só explora, mas um que usa o meio como forma de comunicação, reflexão e conscientização? “E não é isso que está acontecendo com a natureza? A gente explora sem dar nada em troca, uma exploração sem responsabilidade. Se você não replanta muitas coisas dentro da ecologia, vai caminhar para a finitude. Nós somos a natureza e somos partes ativas desse ecossistema. A obra do Krajcberg é isso, um pedido de socorro: olhem para essa agressividade e para o resultado que é uma queimada. Um grito de ‘acordem para o que está acontecendo’”, reflete Antonia durante nossa conversa.

Sem título, 1998, Rivane Neuenschwander

Assim como na obra de Krajcberg, há outras peças que também decorrem da expressividade e/ou atributos do próprio material para construir o cerne do seu significado: José Resende o faz, exercendo o difícil equilíbrio de duas pequenas pedras ligadas a uma pedra-base por barras de ferro, fazendo-nos ver três elementos semelhantes e interligados cujas formas não se repetem. Amélia Toledo concebeu, por sua vez, várias obras inspiradas em suas vivências no Rio de Janeiro, onde caminhava pela praia catando conchas na areia. Entre eles está o Gambiarra, varal feito com fios de náilon e conchas sônicas organizadas de forma a dançar e brincar com o vento. Também intervindo sobre o material natural, Rivane Neueschwander realiza uma espécie de dissecação de duas folhas a fim de destacar suas estruturas que se resumem em linhas e contornos, chamando a atenção para sua delicadeza.

Sem título, 1998, Rivane Neuenschwander

A natureza sempre estará ali, exuberante, diante de nossos olhos, afetos e histórias, viva e num eterno devir, inesgotável em acontecimentos. É preciso cuidar, olhar com atenção, respeitá-la e compreender de uma vez por todas que nós somos parte dela e isso nos exige acompanhar esses movimentos infinitos. Uma coisa atravessa a outra, mas ela está aqui há muito mais tempo do que a gente. Quem chegou invadindo seu espaço fomos nós, humanos, com o nosso capitalismo, nosso senso de exploração, com nossa ansiedade e inquietudes famintas. Talvez, a arte seja de fato uma ferramenta importantíssima nesse prestar atenção ao que nos rodeia, na compreensão absoluta de que depende de nós. Que cada ação não calculada pelo homem seja um passo enorme a destruição de elementos naturais. Goethe reconhece que esta concepção da impossibilidade do homem (finito) apreender a natureza (infinita) é o mais próximo que se pode chegar da perfeição: “Aquele que com inteligência se qualifica como limitado, é o que está mais próximo da perfeição”.