Verborragia – Ensaio Palavra-Imagem com Marcelo Vicintin e Martin Parr

Cassiana Der Haroutiounian

Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, convidei o escritor Marcelo Vicintin para se deixar atravessar pelas imagens do fotógrafo britânico Martin Parr. Vicintin é autor de “As sobras de Ontem” romance de estreia publicado pela Companhia das Letras neste ano que traz um retrato do Brasil por meio da degradação de sua elite econômica. Por sua vez, Martin Parr integrante da agência Magnum é conhecido por seus ensaios documentais críticos, satíricos e antropológicos sobre algumas camadas da vida moderna e de aspectos sociais em geral, com foco principalmente na Grã Bretanha. O casamento entre os dois é de uma elegância afiada e muito bem alinhada. 

Se eu quisesse te contar como chegamos aqui, tudo que precisou acontecer para que isso finalmente acontecesse, eu teria que me alongar muito, teria que ir muito longe, e você se entediaria. Quase com certeza você perderia o interesse em algum estágio intermediário da história. Entender tudo. Não vou contar tudo também porque contar tudo não explica nada. Mas acho que a gente pode concordar com algumas coisas pelo menos. Por exemplo, quando isso tudo começou, o que existia era só o caos. E então veio esse sonho lindo, complicado, insistente: e se fosse possivel dominar o universo? Encaixotar essa bagunça toda? Ordenar o mundo? Começou assim, num sonho de racionalidade. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e Deus era o Verbo.

Foi um humanóide qualquer, duzentos mil anos atrás, quem iniciou isso tudo. Na verdade, seria mais correto supor que não foi apenas um, mas uma série deles, espalhados por sabe-se lá quantos milênios, lentamente compilando as idéias fundadoras do nosso mundo. A primeira ferramenta, a primeira palavra, o primeiro cavalo pintado na primeira caverna, a primeira mentira, o primeiro deus, a descoberta da culpa, o primeiro sacrifício, a raiva do outro e o amor ao próximo, a primeira guerra e todas as guerras depois dessa. O motor a combustão, a ogiva nuclear, e a capa de crochê para tampos de privadas. Queríamos ordem mesmo, ou foi tudo uma farsa, promovida por um Verbo que era, na verdade, apenas o verbo mentir?

Os humanóides, cansados de ser massacrados por leões, cobras e enchentes, foram pouco a pouco substituindo coisas vivas por coisas mortas. Carne por ferro, árvore por plástico. É curioso que nesse estágio tão avançado em que nos encontramos, tenhamos nos cercado de tanto plástico, não acha? Plástico é petróleo, e petróleo é basicamente uma sopa feita com os restos mortais dos dinossauros. Um dia nós também seremos uma sopa, a cobrir e ornar e entupir alguma outra civilização, tão irrelevante e ingênua quanto a nossa, tentando impor ordem ao universo usando fogo e dinamite. Talvez seja melhor admitir logo que o tal Verbo não existe, mas que existe graça nessa mentira toda.