Um coletivo de campos de afeto – O Projeto Pangea de Mariana Tassinari e Manuela Costa Lima
“- E se tivesse aparecido algo para você que nunca viste na realidade, só em imaginação?
– Não compreendo…
– Tudo indica que o Oceano sondou os nossos cérebros, tirando deles alguma coisa igual a pequenas ilhas de memória.”
Do filme Solaris, de Tarkovsky.
Em um mundo onde todos os tempos estão urgentes, avassaladores e curtos, poder experimentar um tempo dilatado é lindo. Manuela Costa Lima e Mariana Tassinari, artistas paulistanas, criaram o Pangea, um arquivo coletivo de memórias, evocado a partir do som.
Pangea é o primeiro continente, é o espaço geográfico onde, no passado, tudo se uniu e hoje, através da voz de diferentes pessoas ao redor do mundo, é o mapa virtual que elas inventaram, transformando uma experiência sensorial individual e afetiva em um lugar. O diálogo entre o virtual e o analógico foi uma das premissas para se pensar o projeto desde o início. Desde o convite que cada um recebe em casa para participar até o conteúdo apresentado.
O projeto traz de forma latente a memória e o afeto como uma maneira de atravessar esse lugar e esse tempo ansioso. A ideia de criar esse mapa de campos afetivos é poder visualizar espacialmente como tudo se encosta como fronteiras porosas e dissolvidas.
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” John Donne
Na contramão do individualismo que nos encontramos com as telas dos celulares, as infinitas abas abertas do computador, as conversas de poucas palavras e longe dos afetos, o projeto – com seus campos afetivos e não mais territórios, como foi pensado no início – traz um pouco desse espírito coletivo que precisamos. Esses lugares de afeto nunca são isolados nesse mapa, mas esbarram em outras histórias. A minha, a sua, a nossa…
Inicialmente, a ideia era de que cada participante acessasse suas memórias por meio da imagem. Mas será que essa era a maneira ideal de propor uma reflexão sobre o tempo acelerado? Outra enxurrada de imagens num espaço virtual? Não, não era. E por isso elas decidiram, de forma extremamente cuidadosa, optar em pela voz.
A voz tem um tempo dilatado. Propor-se a escutar alguém é propor-se estar atento, desperto. Com os olhos abertos ou fechados. Como o tempo de um livro. Em sua essência, exige a pausa e atravessa outros canais sensoriais em cada um. Uma voz, um som nos atravessam, abrindo caixinhas internas que podem não passar pelo racional. Possibilita o imaginar, permitindo que o espectador mergulhe na história do outro acessando o seu background, ativando suas emoções e suas histórias, seus personagens e suas relações com o mundo.
Essa voz que traz as memórias de um objeto de afeto recente ou antigo, carregado de lembranças de um tempo, de uma pessoa, de uma experiência. Para o projeto, é preciso descrevê-lo objetivamente evocando a história que ele provoca.
Cada participante será, em sua ilha, um campo afetivo não isolado por fronteiras, permitindo que eles se encontrem, se complementem e se atravessem. Quando escolhemos acessar uma ilha específica e damos o “play”, esse campo ecoa para os outros como ondas de energia, vibrando e recebendo os afetos do entorno.
“Uma corrente de sentimento que atravessaria o espectro tingindo-se, de cada vez, com cada uma das nuances, experimentaria mudanças graduais, cada uma anunciando a seguinte e resumindo nelas as que a precedem. Ainda as nuances sucessivas do espectro permaneceriam sempre exteriores umas às outras. Elas se justapõem. Elas ocupam espaço. Ao contrário, o que é duração pura exclui toda ideia de justaposição, de exterioridade recíproca e de extensão. “Bergson, Henri”
De forma analógica, elas desenharam manualmente esse mapa afetivo composto por mais ou menos 100 campos. Foram criados um a um, a 4 mãos, inicialmente com fronteiras traçadas dentro de cada território. Mas fazia sentido traçar fronteiras e já propor a separação dentro de cada pedaço de “terra”. Ao passá-lo para o virtual, no site, eliminaram todas as linhas existentes, mantendo apenas o espaço de cada um, quando ativado, de uma cor diferente dos outros. Quando ele está sendo escutado, os outros campos de afeto vão mudando de cor em seus pontos flutuantes.
Se estamos falando de um mapa, de um mundo, de um continente inventado, a escolha do convite para o projeto não poderia ser diferente. Cada pessoa recebe um cartão postal de algum lugar do planeta que faça sentido para o convidado – já tendo uma relação afetiva estabelecida entre elas e quem recebe – com um QR Code pelo qual se acessa o site. E de novo na relação entre o real e virtual, tendo na matéria do papel, nesse objeto palpável, do escrito a mão, do carimbo postal, o caminho para se chegar ao virtual. Esses cartões postais que nunca se repetem são de coleções antigas das artistas e adquiridos recentemente por feiras virtuais e sites de compra.
Receber um cartão postal do Projeto Pangea não é apenas algo para ver e abandonar, é um convite imersivo e sensorial para um mundo de afetos que se abre. Assim como no mapa os campos de afeto se atravessam, por meio do postal, com essa lembrança imediata do deslocamento, há um encontro físico entre elas e nós.
O tempo urgente é difícil de se tornar espaçado, mas apenas o fato de ser provocado a pensar em um objeto que traga memórias, que ative a voz, as sensações, as histórias que se acumulam em cada um de nós, acessando as camadas sobrepostas por tantas abas que se abriram ao longo dos anos, isso tudo já é uma potência. Pensar nos encontros de afetos possíveis que esses campos e seu ecoar podem provocar é pensar o mundo de outro jeito. Um mundo coletivo sem fronteiras, sem divisões, ativado pela força individual de cada memória.
Acesse: http://pangea2020.net