Onde as estrelas eram terrenas

“Se a angústia é tão profunda, é porque cada um de nós começa a sentir o solo ruindo sob os pés. Descobrimos, mais ou menos, confusamente, que estamos todos migrando rumo a territórios a serem redescobertos e reocupados.” Trecho de “Onde aterrar – como se orientar politicamente no Antropoceno” de Bruno Latour.

De hoje até domingo, 6, acontece a Miami Art Basel Beach. Destaco o stand “Onde as estrelas eram terrenas” da Casa Triângulo, curado por Priscyla Gomes. O stand me chamou a atenção pelas palavras, inicialmente, que sugerem infinitas reflexões em tempos de grandes crises, anseios e frustrações pelo planeta. Quando sou fisgada pelo conceito, antes da obra, tento fazer um exercício: me permito por algum tempo entender qual o limite para o meu devaneio com o som de cada palavra. Abro livros, ouço uma música, fecho os olhos e me deixo levar, para só depois buscar entender quem são os artistas, principalmente em meio a tantos eventos online, sem viver a experiência sensorial, tátil de cada espaço expositivo. Pensando nisso, conversei com Priscyla, sobre os disparos filosóficos nesta edição.

Thiago Rocha Pitta, Bahia Gótica, 2019 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

“Quando o convite para uma curadoria na feira aconteceu, ficou clara a necessidade de problematizar aquele momento. Um evento daquele porte, todo sendo realizado virtualmente, colocava uma pergunta sobre o circuito da arte, seus meios de difusão e discussão e, principalmente, sobre o processo de crise que a arte se deflagrou – uma vez que a experiência do contato direto com as obras estava prejudicada pelos protocolos sanitários da pandemia.”

Alex Cerveny, I feel for you, 2020 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

Ela conta que ao aproximar-se das produções recentes de cada artista, muitas das obras refletiam inúmeras inquietudes que pensou em problematizar. Nesse processo, uma aposta já recorrente no processo curatorial se confirmava. A aproximação com os trabalhos não só abriu importantes frestas para investigação, mas também colocava uma questão primordial: era possível encontrar ecos, seja por intermédio das temáticas, dos processos e de seus questionamentos, de uma situação que atingia a todos.

Eduardo Berliner, House, 2020

“A ausência de um mundo comum a compartilhar está nos enlouquecendo. A hipótese é que não entenderemos nada dos posicionamentos políticos dos últimos cinquenta anos, se não reservarmos um lugar central à questão do clima e à sua denegação. Sem a consciência de que entramos em um Novo Regime Climático, não podemos compreender nem a explosão das desigualdades, nem a amplitude das desregulamentações, nem a crítica da globalização e nem, sobretudo, o desejo desesperado de regressar às velhas proteções do Estado nacional – o que se costuma chamar, um tanto erroneamente, de “ascensão do populismo”. Para resistir a essa perda de orientação comum, será preciso aterrar em algum lugar. Daí a importância de saber como se orientar, e para isso traçar uma espécie de mapa das posições ditadas por essa nova paisagem na qual são redefinidos não apenas os afetos da vida pública, mas também as suas bases.”  Latour, Bruno.

Mariana Palma, 2020 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

Segundo Priscyla Gomes, nesse processo de reflexão sobre as questões contemporâneas mais latentes, alguns fatos se sobrepunham, sendo impossível ignorar o reflexo da crise política pela qual passa o país e suas implicações nas questões climáticas e sanitárias. Os noticiários nos deram, ao longo desse último ano, números e mais números sobre como o poder vigente parecia se esquivar de enfrentar as reais emergências do país. Os índices de mortos, o ataque e o descaso às populações indígenas, as incessantes queimadas que comprometeram irreversivelmente a flora e fauna eram tidos como desimportantes, ignorados por medidas de sobrevaloração da economia.

Foi a partir desse cenário que a referência a Bruno Latour se tornou determinante. Em seu ensaio “Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno”, recém-publicado no Brasil, o filósofo e antropólogo reflete sobre o contexto político e econômico mundial, colocando a crise climática como um reflexo das posturas das classes dirigentes.

“Migrações, explosão de desigualdades e Novo Regime Climático: trata-se da mesma ameaça. E por mais que a maior parte de nossos concidadãos subestime ou mesmo negue o que está acontecendo com a terra, eles compreendem perfeitamente que a questão dos imigrantes ameaça seus sonhos de uma identidade garantida.” Latour, Bruno.

Albano Afonso, Still Life, n° 1, 2020

“Uma ideia determinante ao ensaio de Latour e que aparece como fio condutor da investigação dos trabalhos é a noção de aterrar. Na abdicação do nosso direito de trânsito livre, uma das questões que nos parece tão latente é como definimos as bases do território onde fincamos nossas raízes, como tratamos com zelo e com responsabilidade seus elementos originários, como garantimos diversidade a ponto de que os direitos não atendam somente a cada um de nós, mas ao todo. O aterrar é tido como uma metáfora sobre nosso local de origem, mas também sobre nossas convicções. É nesse âmbito que a arte emerge como uma potência transformadora. Nossa experiência com as produções artísticas mais diversas foi determinantes nesses tempos tão limítrofes. É através dessa convicção que os artistas selecionados na mostra se aproximam. Há uma intenção clara que se sobrepõe a todo esse cenário tão desolador, a de que a arte pode e deve ser umas das bases no processo de transformação que se avizinha.” Afirma Priscyla.

Ivan Grilo, Study fir sky on earth, 2018 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

“O que terá se passado? É preciso supor que alguma coisa entortou a flecha do tempo, uma potência antiga e também imprevisível que de início preocupou, depois incomodou, até que finalmente dispersou os projetos dos Modernos de outrora.” Latour, Bruno.

Ivan Grilo, Stay resistant. Be brittle, 2019 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

A gente não sabe o que vai acontecer, nem mesmo o que tem acontecido. Tudo em uma fruição infinita de tempos, acontecimentos e sensações. Resta-nos seguir refletindo, querendo a mudança, criando em diferentes formas de expressão. Da palavra a imagem, dando voz as transmutações do tempo, da história da sociedade e vislumbrar os devires das contelações. Ainda a distância, ainda…