Respiro – Ensaio Palavra-Imagem com 7 artistas que oxigenaram o blog em 2020

O último Ensaio Palavra-Imagem de 2020 é coletivo e representa todo o respiro que esta coluna carregou ao longo deste ano atípico, sufocante, cinzento e de tantas ausências e hiatos. Convidei sete artistas que passaram por aqui desde janeiro para criarem seus próprios Ensaios Palavra-Imagem com apenas uma imagem e um texto da própria autoria ou palavras de outros que os representassem. Um presente para esse finzinho de 2020, com palavras que aguam a alma e inundam os olhos de poesia com Cristina Ataíde, Ivan Grilo, Marcelo Moscheta, Mariana Tassinari, Manuela Costa Lima, Rodrigo Braga e Sandra Cinto. 

Ivan Grilo

IVAN GRILO

Agora que perdi a visão, vejo mais
Passar as últimas semanas na lida com luzes, me trouxe uma leve experiência de cegueira. Uma
cegueira branca, algo como o que o S. tanto fala no livro. Talvez eu tenha exagerado, mas me fez
lembrar Cinema Paradiso: ‘agora que perdi a visão, vejo mais’.
Posso ver um peito aberto, como Prometeu em sua rocha. Pela fenda, onde eu poderia
facilmente habitar, vaza uma linha de luz. Diferente do que diz o L., há uma rachadura, mas é por
onde a luz emana, não por onde ela entra. Peito aberto, repito. Toda a cena segue envolta em um
lençol. É só um repouso. O algodão, que me lembra linho, reverbera algo pra não esquecer e
seguir: ‘abraçar a história no próprio corpo,’.
Penso ver também duas pequenas imagens, que facilmente caberiam em meus bolsos. Uma
delas poderia ser uma foto feita por mim, na minha vista preferida no mundo. Ali, bem na divisa
entre onde havia um pequeno torrão de terra e a outra porção alheia, onde não há posse, mas
habita o afeto. Não sei se consigo ver algo de fato, mas sei que há ali também um homem de
poder descendo as escadas. Nu descendo as escadas. Com ele, uma ou duas mulheres, três ou
quatro homens. A figura central é aquele que despediu-se ao encontro do amor. Não? Cinquenta
anos em cinco, disseram.
Por fim, mas igualmente importante, sei que há outra linha de luz, como uma escrita que
desaparece. Não sei se há algo mais a ser lido. Dos lençóis restaram apenas as fronhas. O
mesmo algodão, a mesma lembrança do linho, a mesma lembrança de pouso. Sei que o calor
deixou algo gravado ali, posso ler: “uma dança, uma confissão,”. Uma dança.

Ivan Grilo
dezembro/2020

Sobre o cristal hematóide (da série Os olhos cheios de terra, 2018), Rodrigo Braga

RODRIGO BRAGA

Sobre o cristal hematóide (da série Os olhos cheios de terra, 2018)

Um coágulo denso caído em chão de poeira de carbono é síntese e é metáfora para o gosto de ferro que sinto ao pisar sobre a terra queimada. Um nódulo sedimentado na terra por milênios, mas que por algum motivo fora revelado, aflorado como jóia por entre inúmeras pedras ordinárias. É singular esta pedra vermelha com ares de estrela caída, ou brasa que queima e faz queimar. Sangra quem pisa descalço e tropeça em sua beleza, pois seu significado é das profundezas do corpo da terra.

Cotidiano Impossível, 2016, Marcelo Moscheta

MARCELO MOSCHETA

 Vou mostrando como sou
E vou sendo como posso
Jogando meu corpo no mundo
Andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros
Eu deixo e recebo um tanto
E passo aos olhos nus
Ou vestidos de lunetas
Passado, presente
Participo sendo o mistério do planeta
“Mistério do Planeta”
@ Luis Galvão e Moraes Moreira, 1972.
Sandra Cinto
 SANDRA CINTO

… A compaixão radical

Esta última irradiação do cuidado – a compaixão radical- representa a contribuição maior

que  o  budismo  ofereceu  à  humanidade.  Ele  é  considerada  a  virtude  pessoal  de  Buda,

cujo nome  real era Siddhartha Gautama, que viveu  entre o VI-V século antes de  nossa era.

A  compaixão  se  insere  dentro  da  experiência  básica  do  budismo,  articulando  dois

movimentos  diferentes  mas  complementares:  o  desapego  total  do  mundo,  mediante  a

ascese  e  o  cuidado  com  o  mundo,  mediante  a  compaixão.  Pelo  desapego,  o  ser  humano

se  liberta  da  escravidão  do  desejo  de posse  e de  acumulação.  Pelo  cuidado,  se  re -liga  ao

mundo afetivamente, responsabilizando-se por ele.

A  compaixão  não  é  um  sentimento  menor  de  piedade  para  com  quem  sofre.  Não  é  a

passiva  mas  altamente  ativa.  C om-paixão,  como  a  filologia latina  da palavra  o  sugere,  é

a  capacidade  de  compartilhar  a  paixão  do  outro  e  com  o  out ro.  Trata-se  de  sair  de  seu

próprio  círculo  e  entrar  na  galáxia  do  outro  enquanto  outro  para  sofrer  com  ele,  alegrar-

se com ele, caminhar junto com ele e construir a vida em sinergia com ele.

Em  primeiro  lugar,  essa  atitude  leva  à  renúncia  de  dominar  e,  no  limite,  de  matar

qualquer  ser  vivo,  recusando  toda  viol ência  contra  a  natureza.  Em  segundo,  procura

construir  a  comunhão  a  partir  dos  que  mais  sofrem  e  mais  são  penalizados.  Somente

começando  pelos  últim os  é  que  se  abre  a  porta  para  uma  sociedade  realmente

integradora  e  includente.  A  filosofia  chinesa  do  Feng-shui,  como  veremos,  propõe  uma

forma  cuidadosa  de  tratar  a  natureza  e  de  organizar  ecologicamente  os  jardins  e  a  casa

humana.

No  hinduísmo  temos  a  ahimsa  que  corresponde  à  com -paixão  budista.  É  a  atitude  de

não-violência,  pela  qual  se  procura  evitar  qualquer  sofrimento  ou  constrangimento  a

outros  seres.  Muitos  textos  sagrados  hindus   ensinam  a  tratar  todos   os  seres  com  o

mesmo  cuidado  e  a  mesma  reverência  com  que  tratamos  nossas  crianças.  Gandhi  foi  o

gênio moderno da ahimsa.

A tradição do tao  conhece um conceito semelhante, o wu wei. Trata-se de uma virtude

ativa:  harmonizar-se  com  a  medida  de  cada  coisa,  deixar  ser  e  não  interferir.  Ao

renunciar  às  coisas,  lutando  contra  nossa  vontade  de  possuir,   exercemos  o wu  weil,

quer  diz er,  entramos  em  comunhão  com  as  coisas,  captamos  sua  dança  e  juntos

dançamos.

O  judeo-cristianismo  conhece  a  rahamim  a  misericórdia.  Em  hebraico  rahamim

significa  ter  entranhas  e  com  elas  sentir  a  realidade  do  outro,  especialmente  de  quem

sofre.  S ignifica  portanto,  consentir  mais  do  que  entender  e  mostrar  capacidade  de

identificação  e  com-paixão  com  o  outro.  A  misericórdia  é  considerada  a  característica

básica  da  experiência  espiritual  de  Jesus  de  Nazaré.  Ele  experimentou u  e  anunciou  um

Deus Pai cuja misericórdia não tem limites: dá o sol e a chuva a justos e injustos e não

deixa  de  amar  os  ingratos  e  maus.  Ele  é  o  Deus  misericordioso  com  o  filho  pródigo,

com  a  ovelha  tresmalhada,  com  a  pecadora  pública.  É  um  Pai  com  características  de

Mãe. Ele  mesmo mostra misericórdia com aqueles que o levaram à cruz.

O  salmo  103  expressa  muito  bem  a  centralidade  divi na  da  misericórdia:  ―O  Senhor  é

rico  em  mi sericórdia,  não  está  sempre  acusando  nem  guarda  rancor    para  sempre;  como

um  pai  sente  compaixão  pelos  filhos  e  filhas  porque  Ele  conhece  nossa  natureza  e  se

lembra  de  que  somos  pó;  a  misericórdia  do  Senhor  é  desde  sempre  para  sempre

(versículos 8-17).

No  momento  supremo,  quando  tudo  se  decidir,  seremos  julgados  pelo  mínimo  de  c om-

paixão  e  de  mi sericóridia  que  tivermos  tido  com  os  famintos,  os  sedentos,  os  nus  e  os

encarcerados  (Mateus  25,  36.41).  Esse  critério  da  com-paix ão  é  idêntico  entre  os

cristãos,  egípcios  e  ti betanos,  amplamente  retratado  nos  seus  respectivos  livros

sagrados.

Concluindo:  essas  ressonâncias,  entre  outras,  são  eco  do  cuidado  essencial.  Trata-se  de

vozes  diferentes  cantando  a  mesma  cantilena.  É  o  amor,  a  justa  medida,  a  ternura,  a

carícia,  a  cordialidade,  a  convivialidade  e  a  compaixão  que  garantem  a  humanidade  dos

seres  humanos.  Através  desses  modos-de-ser,  os  humanos  continuamente  realizam  sua

autopoiese,  vale  dizer  sua  autoconstrução  histórica.  Simultaneamente  constroem  a  Terra

e  preservam  as  tribos  da  Terra  com  suas  culturas,  seus  valores,  seus  sonhos  e  su as

tradições espirituais.

Trecho extraído do livro: Saber Cuidar :Ética do Humano- Compaixão pela Terra,Leonardo Boff Editora Vozes, Petrópolis, RJ,1999

Pangea, 2020, Mariana Tassinari e Manuela Costa Lima
MARIANA TASSIANA E MANUELA COSTA LIMA

“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Meditações VII, John Donne

(Im)permanências, 2003, Cristina Ataíde (Foto:Silvio Santana)
 CRISTINA ATAÍDE
No rio, no corpo, na terra
Há um ponto que é princípio e é fim
Há um rio que corre
Há uma planta, raiz, estuário?
Há um corpo que percorre o rio
que esgravata na terra
que nasce árvore
Há uma vida que se transforma
em alma, há uma passagem
para a outra margem!cristina ataide, lisboa 2004