Como desaparecer completamente – Ensaio Palavra-Imagem com Julia de Souza e Eugène Atget
O Entretempos está de volta depois de uns dias em terras armênias. E ele chega chegando com a delicadeza das palavras de Julia de Souza e das emblemáticas imagens de Eugène Atget. Julia, poeta paulistana, publicou “As durações da casa” (2019), “Gigante vermelha” (2016) e “Covil” (2013). Atget (1857-1927), francês, um dos grandes nomes da fotografia documental, criou um retrato enciclopédico e idiossincrático de Paris no auge da era moderna. Essa conversa entre os dois, de tempos tão distantes, se dá de forma super melódica com as palavras de Julia.
How to disappear completely
Os anjos boiam, olham para o céu
no lago em frente ao Triannon;
o céu então recebe o olhar
petrificado dos anjos e
em algum ponto de Paris
alguém pensa: parece que
vai chover, deixei as roupas
no varal; em algum ponto de Paris
alguém se apressa em voltar
para a casa vazia
*
Já desapareci algumas vezes
agora me lembro
perdi o nome
perdi a carne
quando caiu a luz
num lugar antigo e triste
mas agora tento escrever um poema
que não seja um retrato
e não provoque nenhum tipo de
identificação — espelhar-se é desejar
durar —
mas para tingir o poema dessa ausência
seria talvez preciso dizer:
ela já desapareceu algumas vezes
ou
você, leitor, já desapareceu
se sentiu engolido no presente sem fim
sentiu que caía
lentamente
que caía
para sempre
enquanto subia uma longa
escada espiralada?
*
O fotógrafo Eugène Atget
tinha obsessão por maçanetas
e corrimões ornamentais
há muito não tocados
ou tocados apenas por fantasmas
como suas imagens
vazias de humanos
tocadas pela luz necessária
não à vida, mas a elas mesmas.
No verso de suas fotografias, escrevia:
“vai desaparecer”.
Previa talvez as ruínas verdes
as estátuas os túmulos
os anjos cobertos pelo limo radiante
cujo verde não vemos nas fotografias,
a natureza tomando de volta
invadindo
forrando
engolindo aos poucos
aquilo que nunca temeu perder
*
Escuta-se agora na rádio
um antropólogo dizer
que para as civilizações primitivas
os cataclismos, os incêndios
os fins inúmeros do mundo
eram apenas fenômenos depurativos
um reset
ou uma espécie de passagem
para algo de que não faríamos
mais parte
como se desaparecer fosse apenas
deixar uma casa em chamas
para trás
*
Há uma canção muito triste
e talvez antiga chamada
How to disappear completely;
a letra é muito simples
uma espécie de testemunho
da ausência
e diz coisas como
eu não estou aqui
isto não está acontecendo
o momento já passou.
Talvez seja mesmo possível
que algo — e sobretudo alguém
desapareça completamente;
alguém que,
(como disse meu amigo T.)
se encontrava ermo
enganchando os pés
na borda da cama vazia
alguém que lavou todos os pratos
antes de deixar a casa
*
Não é no mar,
nas sim no Rio Sena que dois
barcos flutuam siameses
sobrevivendo à neblina
ou embalados por ela.
É de noite que o mar pensa, me disse I.
No crepúsculo os rios
e os barcos estão latentes
e aí reside grande parte de nosso engano
*
No gozo, no fogo-fantasma
que é todo gozo
desaparecemos
expiramos — o ar, o eu —
desapareceremos por engano
partimos num barco-fantasma
assim como no sono
me permito sem querer
partir