Corações frescos e vermelhos – Ensaio Palavra-Imagem com Zabel Yesayan e Juliana M. Nersessian

Cassiana Der Haroutiounian

Esta edição do Ensaio Palavra-Imagem traz duas mulheres armênias, de diferentes épocas, contextos e gerações. Zabel Yesayan(1878 – 1943), intelectual feminista que narrou, dentre outras coisas, os horrores dos massacres de armênios no Império Otomano durante a 1ª Guerra Mundial. Foi a única mulher entre os intelectuais armênios deportados no dia 24 de abril de 1915, data-início do genocídio deste povo. Professora, pensadora e grande nome da literatura armênia, morreu em um campo de trabalhos forçados na Sibéria, acusada de nacionalismo na URSS de Stálin. Mesmo depois de cem anos de lançamento de suas principais obras, infelizmente, ainda não temos seus livros traduzidos para o português. Juliana Marachlian Nersessian,  artista visual paulistana de ascendência armênia, faz parte da dupla Lanó, na qual desenvolve pinturas em murais. Paralelamente, Juliana vem criando ilustrações digitais baseadas em fotos antigas de mulheres armênias, explorando as padronagens e vestimentas  tradicionais. Ela busca, com essas ilustrações, se aproximar de diferentes gerações de mulheres através de sua leitura daquela realidade que não viveu, mas que ela se sente pertencente de alguma forma. A junção dessas duas mulheres só poderia ser de uma beleza e de uma riqueza cultural um tanto emocional pra mim.

O moinho de vento vermelho

Premonições cinzentas me atordoavam com uma dança sombria e, minh’alma, suspensa em uma inspiração mórbida, foi empurrada para o centro de um mundo ilusório.

Lá, tudo era preto. Almas em luto deslizavam pelo espaço como uma revoada de morcegos. À minha volta, ouvi canções fúnebres; o cheiro de corações queimados se intensificou na escuridão.

Lá, os batimentos cardíacos reverberavam e produziam uma melodia assustadora que parecia o grito de uma coruja. Eu também me tornei um pedaço dessa escuridão, aprisionada na obscuridade infinita que tragava todo o espaço.

E assim vagamos, quase sem sentir a escuridão. Em sua profundidade, edifícios gigantescos levantaram suas fundações aéreas e nos deixaram passar sem dificuldade alguma. Um sussurro atmosférico direcionou nossa jornada, que se tornou uma dança, uma enlouquecida e monótona dança composta de sombras interligadas. Puxando um ao outro, rodamos em torno de algo com uma desesperada, sem sentido e inconsciente excitação.

Uma luz fria deixou um raio no espaço e diante de nossos olhos apareceu o moinho vermelho em movimento.

Era um moinho de vento gigante, cujo topo desapareceu nas sombras. Ele girava constantemente e a cada volta, o rangido de sua roda invisível, terminando em um gemido prolongado, era ouvido no eco. Sangue vermelho jorrava de todos os lados, como se saísse de cada um dos poros da estrutura, dando a impressão de que o moinho era formado por sangue coagulado.

À distância, bocas sinistras se abriram e responderam aos soluços que subiam das profundezas do moinho de vento com explosões peculiares de riso.

O que eles estavam cortando lá? O que eles estavam esmagando?

Nossa dança era agora muito mais frenética e, aos poucos, o raio congelado iluminou a estrutura com mais intensidade.

Foi então que os vi jogando corações para dentro.

Eles jogaram e jogaram…  Eles jogaram aqueles pedaços de carne enegrecidos e perfurados, muitos dos quais estavam carbonizados e reduzidos a praticamente nada, em um ritmo desconcertante. Quanto mais eles jogavam, maior se tornava o número de almas negras enlutadas. O sussurro ecoou e dominou completamente os gritos proferidos, risos e canções.

Como eu permiti que absorvessem todo o meu ser? Como a injeção deles me dissolveu átomo por átomo? Continuei a observar os corações que eles jogavam dentro do moinho de vento, às vezes corações ainda frescos e vermelhos.

De repente, senti uma pontada aguda, como o desvanecimento da minha existência irresoluta, e, em meio aos corações lá dentro, percebi que eles estavam jogando o meu.

Olhei ao meu redor, consternada e emocionalmente agitada, quando vi Seus olhos conduzindo o moinho de vento, de cima, com Seu olhar.

*tradução inglês-português: Heitor Loureiro – originalmente escrito em armênio

***Você, que amou as ilustrações da Juliana como eu, apoie o projeto “dehatsi – eu era outro lugar” no catarse e e escolha uma delas como recompensa. Você receberá em sua casa a ilustração escolhida impressa