O ventre da terra – um devaneio sobre a terra e suas camadas na Galeria Superfície

Passagem, Celeida Tostes, 1979
Cassiana Der Haroutiounian

“O sonho da Terra é uma metamorfose. O que é pedra vira borboleta, o que é pau vira vento, o que é vapor vira chuva, as nuvens despencam em tempestade. Toda essa fantástica movimentação da vida é o sonho da Terra. É a transformação, a metamorfose.” Ailton Krenak em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos.

Passagem, Celeida Tostes, 1979

A Terra pulsa, transpira, sente. O ser humano pulsa, transpira, sente. Em uma sinergia necessária e fundamental, hoje desajustada  para os possíveis encontros e micro acontecimentos em sua máxima potência. É preciso que estejamos alinhados, na terra como política, como território, como casa, como pele e como ninho.

Passagem, Celeida Tostes, 1979

“Estamos experimentando a febre do planeta” já disse Ailton Krenak em uma de suas entrevistas. E é diante  deste corpo-terra quente que estamos. E que provocamos também. Segundo ele, nos descolamos desse organismo vivo chamado terra, dessa redoma que nos acolhe e nos convida a compassar os batimentos cardíacos, seguindo rotas individualistas e egoístas.

Epidermic scapes, Vera Chaves Barcellos, 1977

Seguindo um pouco do pensamento latente que permeia o mundo e o planeta, a Galeria Superfície abriu ontem a exposição “O Ventre da Terra” com obras de artistas brasileiros dos anos 1970, carregadas de história,  com produções que conversam diretamente com os tempos atuais em questões urgentes do passado e de hoje, como uma ponte entre esses momentos históricos do país. Um conjunto de obras que trata de temas relativos à fertilidade, ao nascimento, à vida e à morte. Um olhar para o lugar de origem, para os processos que são próprios da natureza humana, dos ciclos que se iniciam e se encerram na Terra.

Rosa dos ventos, Amelia Toledo, 1973

Sabemos que os anos 1970 são um momento de uma crise muito clara, um endurecimento e rigidez e uma afirmação da potência do corpo como um dispositivo de arte. E ao olharmos para a produção de 2021, esses paralelismos acontecem, pensando o corpo e em questões identitárias. Obras históricas reunidas com nomes como Amelia Toledo, Ana Mendieta, Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Amelia Toledo, Celeida Tostes, Hélio Eichbauer, Lotus Lobo, Mara Alvares, Neide Sá, Nydia Negromonte, Péricles Eugênio da Silva, Sérvulo Esmeraldo, Tunga e Vera Chaves Barcellos.

Brasil nativo, Anna Bella Geiger, 1977

“Trabalhos que afirmam essa postura diante da vida, lidando com uma certa imanência com a terra, com a paisagem. Não é uma relação sujeito/objeto, a terra como  um organismo vivo e uma condição de transformação para esse ser.” Devaneia Pollyana Quintella, responsável pelo texto da exposição que trabalha com arte brasileira dos anos 1970 com um interesse pontual por artistas femininas. 

Sem-título, da série Silhueta, Ana Mendieta, 1977

A exposição faz uma ponte com esse sentimento de falência e crise com o que estamos vivendo e o modo como o planeta está colapsando. Traz a Terra como um significante em suas múltiplas camadas, um significante que se desdobra em muitos sentidos: território, sujeito, renascimento, transformação, ritual,  tempo, história e cicatriz.

“Viver uma manhã no seio da Pachamama, da Terra, é um conforto diante de tanta desolação do ponto de vista ambiental e também do ponto de vista dos sonhos, de pensar mundos”. Ailton Krenak em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos.

Sem-título, da série Vida Afora, Anna Maria Maiolino, 1981

Além das obras precisamente escolhidas, o espaço expositivo foi todo pensado baseado no trabalho e no conceito de Celeida Tostes, em parceria com o estúdio de arquitetura MNMA e parceria de execução da Taipal. A expografia será toda feita em terra, utilizando a técnica ancestral de construção com adobe e taipa, numa negociação de vários sentidos de terra testados e experimentados, trazendo os conflitos disso com o espaço expositivo, entre os trabalhos e a própria arquitetura.

Vista da exposição (Foto: Gui Gomes)

“Gesto arcaico” foi a ação reflexa da mão quando recebe o bojo do barro macio, definia Celeida Tostes em Mutirão, seu sempre espírito de trabalho,  e foi  nesse espírito que se deu o processo da expografia. Inspirados pela obra “Muros de Resistência” de Tostes, onde os tijolos de adobes foram recriados com a mesma receita usada: palha de arroz, argila e barro.

Posta, Nydia Negromonte (Foto: Gui Gomes)

Em 1983, a artista  foi convidada para expor na 17ª Bienal Internacional de São Paulo. Para tanto, propôs um trabalho decorrente de sua pesquisa no qual um novo muro seria realizado em etapas: na primeira, os detentos de uma penitenciária em São José do Rio Preto fariam tijolos na olaria do presídio; na segunda, presos em regime semiaberto construíram um muro nos jardins em frente à Bienal, no Parque do Ibirapuera; a terceira parte do muro seria construída dentro do prédio de exposições. Para a artista, as três partes do trabalho formavam um único muro e ela pretendia que o trabalho fosse deixando vestígios de seu caminho até a Bienal, com tijolos marcando o trajeto de São José do Rio Preto até o Ibirapuera. A obra incluía também outro circuito: uma urna levaria para o pavilhão mensagens dos presos do interior de São Paulo. O público leria esses recados no último dia da Bienal, quando as duas urnas seriam abertas, expondo os dois lados de um mesmo muro. A artista previa que, ao fim da Bienal, os tijolos fossem doados para a comunidade mais próxima ao Ibirapuera. Além disso, como ia contar com a ajuda do sistema penitenciário de São Paulo para realizar a obra, dispunha-se a dar como contrapartida a montagem de oficinas de cerâmica em presídios femininos. Era, portanto, um projeto relacional, de arte pública e com forte inserção na paisagem. Ao receber o projeto enviado diretamente pela artista, a Bienal – naquela edição sob a curadoria de Walter Zanini – simplesmente desconvidou-a e nada aconteceu. O trabalho de arte já não tem mais a ver com a representação, mas com a esfera do acontecimento, da presença. Isso define um legado chamado Celeida Tostes. E esse é o “mood” que essa expo na Superfície traz, segundo Mariana Schmidt, fundadora  do escritório MNMA, com quem conversei há 3 dias.

Amassadinhos, Celeida Gomes, 1991 (Foto: Gui Gomes)

Percorrer essas imagens tão cheias de simbologias, presenças, forças e processos rituais com certeza nos atravessará e provocará alguns devaneios e inquietações importantes para seguirmos habitando a Terra em seu ventre. De enraizarmos nosso ser ao acontecimento dessa Terra que nos acolhe, nos serve de superfície, de redoma, de inícios e fins. Respeitar os ciclos.

Lábios, Tunga

“A vida é um organismo. A Terra é uma materialidade dessa vida. Nosso corpo, assim como o de uma formiga, ou de uma borboleta, é a materialidade da vida. A vida passa na gente e vai para outro lugar. Ela não fica parada em lugar algum. Esse sonho da terra é essa vida. A vida maravilhosa. E ela não tem fim.” Ailton Krenak em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos.

*Em cartaz até 17.04.21