O outro lado – um devaneio sobre a montanha na arte contemporânea
“Estou sempre pensando
que lá por detrás dele
acontecem outras coisas que
o morro está tapando de mim
e que eu nunca hei de
poder ver”
Guimarães Rosa.
Na última segunda-feira assisti ao filme “La Cordillera de los Sueños“do cineasta chileno Patricio Guzmán. Inspirada por ele e por todas as montanhas que venho colecionando há anos, senti vontade e necessidade de agrupá-las aqui, durante esses tempos sombrios que pedem, ao mesmo tempo, quietude e ação e nos obrigam a estar presentes, com a necessidade de viver o hoje e acreditando no amanhã. Para mim, ela, a montanha, é o símbolo maior de presença, quietude e solitude. No hexagrama 52 do I Ching – o livro das mutações – da filosofia chinesa, diz: “os pensamentos negativos devem ser mantidos em silêncio”. Talvez. Ou não. Somos inundados de pensamentos negativos que mantêm os positivos numa névoa permanente. E a montanha segue em seus pequenos acontecimentos, imperceptíveis a olho nu. Cicatrizes, fissuras, sangue, poeira e terra são as consequências.
Segundo Guzmán, estar rodeado por montanhas – no caso, a Cordilheira dos Andes – é estar cercado de uma beleza integral, trágica e maravilhosa, carregada de força e ternura. “E tem o odor das rochas, o aroma do vento”, define um dos entrevistados. Cada montanha é um baú que contém as leis políticas mais importantes de um território, de um povo. Tudo acontece dentro delas, mantendo a sensação de um grande container de rochas e memórias. Um labirinto de tempos, esperas, conflitos e sonhos em uma rocha. Em suas tonalidades, texturas, formas e linhas.
“Existe uma alma dentro da alma. Procure-a. Há um tesouro em sua montanha. Procure-o. Um místico movimento, se é isso que você é, não procure por aí; procure dentro.” Rumi
Nessa muralha de pedras, pensar a cordilheira como um mar que nos converte em ilhas, tendo a montanha como testemunha. São pedaços de histórias em pequenos fragmentos do Universo em cada traço dessa potência da natureza.
É muito mais um devaneio do que qualquer outra coisa… Propor uma imersão em montanhas de diferentes lugares, junto de uma imersão sensorial sobre o ser e estar agora. Com este governo. Com uma pandemia. Com tantos adiamentos e frustrações.
“Estuários freqüentes
Desviam nossas velas.
E de que lado, onde
Uma visão mais bela
Se o único prazer
É ter o mar, o vento
E naufrágios além
E descobertas
E permanências veladas…
Muita ausência…
Em que montanha azul a nossa meta?”
Hilda Hilst
Se para mim existe algo que pode se comunicar bem é a conexão entre a montanha e a arte. Em uma relação de estar desperto, de proporcionar o sonho do outro lado e os atravessamentos que elas causam em cada um de nós. Na contemplação da beleza e do estado de atenção que provocam e exigem.
“Mas o sonhador de mundo não olha o mundo como um objeto, precisa apenas do olhar penetrante. É o sujeito que contempla. Parece então que o mundo contemplado percorre uma escala de clareza quando a consciência de ver é consciência de ver grande e consciência de ver belo. A beleza trabalha o sensível. A beleza é a um tempo relevo do mundo contemplado e elevação na dignidade de ver. […] No mundo da palavra, quando o poeta abandona a linguagem significativa pela linguagem poética, a estetização do psiquismo se torna o signo psicológico dominante. O devaneio que quer exprimir-se torna-se devaneio poético. É nessa linha que Novalis pôde dizer claramente que a liberação do sensível em uma estética filosófica se fazia conforme a escala: música, pintura, poesia. ” Gaston Bachelard
Cuidem-se. Nutram-se de coisas bonitas. Cultivem um olhar para o amanhã e para o outro. Tudo depende de nossas montanhas internas.