O infarto da alma – Ensaio Palavra-Imagem com Diamela Eltit e Paz Errázuris
Neste Ensaio Palavra-Imagem: o retrato do amor sob a loucura. Com as palavras de Diamela Eltit e as imagens de Paz Errázuris no livro “O Infarto da alma”, marco do foto-livro latino-americano publicado em 1994 no Chile e ano passado pelo Instituto Moreira Salles. Diamela, um dos mais importantes nomes da literatura contemporânea chilena, foi convidada pela fotógrafa a acompanhá-la nessa jornada no Hospital Psiquiátrico Philippe Pinel, em Putaendo, cidadezinha chilena a 200 quilômetros ao norte de Santiago, na região turística de Valparaíso. Paz, fotógrafa com atuação marcante no contexto da ditadura de Pinochet, já havia avançado bastante nas visitas e no registro dos casais apaixonados quando convidou a escritora. O livro, feito ao longo de dois anos, traz fotografias de uma riqueza emocional ímpar, distantes das tradicionais representações visuais da loucura; imagens que ajudam a dar corpo e voz a pessoas que beiram o esquecimento e que, ao se entregarem ao amor, resistem a toda despersonificação que já lhes foi imposta pela sociedade e pelo Estado. Paz alugou um apartamento a três quilômetros do hospital para poder ir repetidas vezes ao local e ficar por períodos extensos. A dupla criou um trabalho lindo, forte e tão cheio de reflexões sobre o ser humano, o amor, as relações e a troca.
Os casais me deixam confusa. Há uma grande quantidade de enamorados. Enamorados, eles existem? Margarita com Antonio, Claudia com Bartolomé, Sonia com Pedro, Isabel e Ricardo e assim por diante. Qual é a linguagem desse amor? Me pergunto enquanto os observo, pois nem palavras inteiras eles têm, possuem apenas, quem sabe, o extravio de uma sílaba terrivelmente fraturada. Então, o que concluo? Desde que momento? Que estética amorosa os mobiliza? Vejo, diante de mim, a matéria da desigualdade; quando eles rompem com os modelos estabelecidos, presencio a beleza aliada a feiura, a velhice vinculada a juventude, a relação paradoxal do coxo com a coalha, da letrada com o iletrado. E aí, nessa descompostura, encontro o cerne do amor. Compreendo exemplarmente que o objeto amado é sempre uma invenção, a máxima desprogramação do real, e, nesse mesmo instante, devo aceitar que os apaixonados possuem outra visão, uma visão misteriosa e subjetiva. Afinal de contas, os seres humanos se apaixonam como loucos. Como loucos.
“Na noite de anteontem e ontem a noite e nesta manhã… Na noite de anteontem e ontem a noite e nesta manhã… canta uma das asiladas pelos corredores de um dos setores. Canta uma melodia, uma melodia que me parece simétrica a seu corpo, que por sua vez se dilata retorcido por uma paralisia lateral, um corpo parcialmente impedido, mas não por isso menos afetuoso. Canta com uma voz sentimental que me sobressalta. Sobressaltada por seu canto, saúdo o último casal da manhã. Não se lembram há quanto tempo estão juntos: “Muito… muito”, dizem. Não sabem ver a hora, não sabem ler, não sabem há quantos anos estão internados no hospital, não sabem nada de seus familiares. Mas ele dá a ela chá e pão com manteiga. Ela cuida dele.