O instante imóvel entre um tempo e outro – Ensaio Palavra-Imagem com Iara Biderman e Wang Wei

Cassiana Der Haroutiounian

O Ensaio Palavra-Imagem chega hoje com o ritmo do vento, que nos tira do lugar, provocando novos pontos de fuga invisíveis e soprando as palavras. É o que nos resta nos dias habitados do hoje. Com a palavra, a jornalista Iara Biderman, que escreve sobre dança e outras artes do corpo e das palavras, além de refletir sobre saúde, comportamento, educação, cultura e o que mais vier. Freelancer, Iara vive nessa polifonia – ou tenta viver, porque é disso que gosta. Com a imagem, o chinês Wang Wei, que é bom em usar uma visão nova para expressar a paixão e o impulso da juventude atual. Essa atitude “jovem, selvagem e livre” transborda em cada uma de suas fotos e cria um mundo único para ele e para os espectadores. O resultado entre os dois é uma dança-salto livre imaginada, sonhada e idealizada.

 

Quando nasceu, um anjo torto tremeu as asas e disse: vai Wang, e era quase uma cacofonia.

Recebo de Cassiana um convite para o escrever aqui: palavra imagem entretempos. Algo com dança.

Chegam as imagens, o instante imóvel entre um tempo e outro dos movimentos. Fotos de Wang Wei, um chinês do insta. Nunca ouvi, vou atrás. Seguir.

Wang Wei é um fotógrafo de moda. Vive e trabalha em Beijing, onde captura a cultura underground da juventude chinesa — sua série de fotos mais famosa, parece, chama-se “Jovens, selvagens e livres”, tudo o que gostariamos de ser agora, aqui, nesse mundo velho, doente e encarcerado.

O anjo esconde o rosto, constrangido. Não quer ver o corpo nu enrolado no plástico, uma dança de vento, olha, não são asas nascendo nas costas? Ou não quer ver a criatura ao se levantar, grudado na pele o plástico usado para se proteger à noite, ao deitar-se numa esquina da Beijing como os sem-teto de Santa Cecília?

Não precisa ser nada jornalístico, é palavra imagem. Como fotografar o movimento antes que escape. Na dança, a melhor foto é tirada um milímetro antes do ápice do movimento, o lugar impossível onde está contido inteiro, em silêncio. Escuta: o plástico dança a música do vento, o anjo tapou os ouvidos, coitado, não pode ouvir. Confunde-se entre as músicas das baladas, as buzinas de Beijing, prateleiras de supermercado, a minissaia vermelha da menina de coxas pálidas.

Um dia Wang Wei fugiu da cidade e seguiu os olhos do anjo para inventar uma dança no campo. Porque o fotógrafo chinês é muito jovem, nem trinta anos, ainda, e gosta de moda, e corpos, e meninas sem blusa escondendo os seios com hambúrgueres do McDonalds, e a dança dos casais transando embaixo da escada.

Antes de ser jovem, selvagem e livre, Wang Wei foi poeta e pintor, no século 8. Suas palavras imagens eram a natureza. Silêncio. Em 1988, no suplemento Folhetim, desta Folha de São Paulo, o poeta Haroldo de Campos publicou “Três versões do impossível”, transposição criativa de três poemas de Wang Wei, o velho. Uma delas, “O Refúgio dos Cervos”:

Montanha vazia não se vê ninguém

ouvir só se ouve um alguém de ecos

raios do poente filtram na espessura

um reflexo ainda luz no musgo  verde

Quando Wang Wei, o jovem, seguiu o anjo, encontrou o corpo nu e ereto sobre a grama verde, nem novo, nem antigo, dançando a música do vento. O fotógrafo viu tudo enquanto o anjo tapava os olhos e ouvidos com suas asas.

Mas como era um anjo de verdade, enxergou. E como era um anjo de verdade, caiu. E manchou com sua sombra a grama verde. Deixou suas roupas brancas na noite, e vestiu vermelho, que é uma cor mais adequada para os anjos caídos e o fotógrafo gosta muito de cores sólidas e da vibração vermelha no musgo verde. Então o anjo abriu uma asa, na diagonal, a outra mão e um pé bem fincados na terra.