Passado Futuro Presente – Ensaio Palavra-Imagem com Júlia de Carvalho Hansen e May Parlar

Cassiana Der Haroutiounian

Neste Ensaio Palavra-Imagem, a artista visual turca May Parlar inspirou a poeta e astróloga capricorniana brasileira Júlia de Carvalho Hansen. Parlar é uma artista conceitual que emprega arte performática e cria instalações temporárias de objetos suspensos em paisagens naturais. Algumas de suas séries questionam as noções de identidade, percepção e pertencimento, usando a imagem para buscar significado na consciência e na condição humana. Hansen estudou literatura na Universidade de São Paulo e na Universidade Nova de Lisboa. Ela publicou Cantos de Estima (edição da autora, 2009 e Douda Correria, 2015); O túnel e o acordeom (Não Edições, 2013); Alforria blues ou Poemas do Destino do Mar (2013), Seiva veneno ou fruto (2016) e Romã (2019), este último que me fez suspirar muito recentemente. Ela ainda é editora da Chão de Feira. O encontro entre as duas é de uma delicadeza e de uma potência arrebatadora, capaz de atravessar todos os nossos tempos de existência. 

PASSADO

Sou uma delas. Corre em mim o mesmo sangue. Por vezes sinto nos ossos o que é antepassado, o que tem hálito de gelo. O vento que o gelo solta no contato com o tempo. Os seus mortos também são os meus, velados. Mas nada disso é muito natural. Foi conquistado pelo hábito, pouco a pouco foi se tornando regra e, quando notamos, éramos todos iguais. Um padrão que se repetia idêntico na busca de sentir como quente, o frio.

No povoado poucas escapavam. Eu mesma nunca soube se eram melhor sucedidas as que não davam conta, ou as que a tudo resistem. Me reconheço como a que escapa e se liberta sempre, tornando o corpo uma flâmula de árvore no vento. Mas sou, em verdade, a que se senta. A imobilidade leva a apalpar os músculos sem tocá-los, duros como a montanha iluminada. Só de respirar reconheço as fibras das minhas pernas, enquanto o gelo sobe pelos ossos, sinto se emaranhar em mim uma sutil doçura, tácita, atávica, controladora.  Não se cansa o destino em trazer dureza?

Uma vez tive de ir ao iceberg, mas levei um livro escondida. Tirando os livros, só as salas de aula podem ter tanta experiência contida nelas. No livro, um homem sábio e louco que foi tomar peiote tentando deixar de ser europeu contou que numa tribo mexicana as mulheres quando menstruavam iam juntas pra longe e se sentavam, paradas, olhando o horizonte de uma montanha. Por dias a observavam, sem se mexer muito, descansavam. Firmes, seus olhos na montanha, sangravam desde o ventre.

Era um pouco como aqui. Enquanto o nosso núcleo se dispersa pelo espaço, grão a grão, na eternidade o iceberg se move, na sutil aparência de estar imóvel. Talvez por semelhança, eu tinha sempre que retornar ao iceberg, como uma forma de evitar a desintegração, como um jeito de lidar com a morte, ou com o que não aconteceu.

A morte e o que não aconteceu, podiam ser a mesma coisa, porque vem do mesmo lado, mas são completamente antagônicas. E entre uma e outra existe tanta coisa. Inclusive o permanecer.

FUTURO

Dizem que lido bem com símbolos, mas eu só gostaria de criar novos mitos que não criem mitos. Jorge, por exemplo, dizia que Gaia, a Terra, trabalhou por eras pra inventar a espécie humana. Mas, em realidade, não era exatamente essa espécie que a Terra queria, como já está bastante claro no mundo, e o Brasil,… o Brasil infelizmente só confirma. O que a Terra queria da “nossa” espécie era a invenção do plástico. Agora que tem o plástico, a Terra vai se livrar de nós. Eu acho que é isto: no planeta pós-humano conquistado pelo plástico, a paisagem emite um balão vermelho para cada espécie dizimada.

PRESENTE

Chegou um dia em que não pude mais ir à montanha de iceberg. Não me sentia ainda pronta pra observá-la na minha paisagem de aço interior. Mas não tive escolha. Armadura que mora no esqueleto e por dentro abrilhanta tudo, inclusive o único momento em que se pontua o dia a dia: estou dentro de casa. Lá fora, pessoas morrem. Morrem. Morrem. Morrem. Morrem todos os dias aos milhares de uma doença pra qual já existe vacina.

O que pontua as horas dessa passagem não é um click de relógio qualquer, pois os calendários parecem girar em falso no presente. Acontece é que em horas irregulares do dia, um vizinho distante, mas audível de plenos pulmões, grita: FORA GENOCIDA! FORA ASSASSINO! Meu vizinho funciona como um relógio cuco da distopia, e sempre que ele grita eu sorrio, sinto um alívio, é alguém resistindo, marcando o tempo que se apaga. Mas fico logo triste por ter sorrido. Sobe a raiva em que eu me vejo contida. Não é fácil. Não é de hoje que eu queria me tornar montanha. No fundo eu sei que no futuro os balões coloridos vão subir, também a lembrar dos mortos. E que nesse dia o nome d’ele-não terá sido destroçado pelos dentes dos cães dessas ruas abandonadas. Mas saber disso nem sempre adianta.