As cores do universo de Flavia Aranha
“As plantas são o ornamento cósmico, o acidente inessencial e colorido relegado as margens do campo cognitivo… são as feridas sempre aberta do esnobismo metafísico que define nossa cultura.” Emanuele Coccia, A vida das plantas – uma metafísica da mistura
Falar de moda com a Flavia Aranha é transitar por diferentes camadas do ser. São tantos os caminhos e processos que ela vivenciou que, por meio da roupa que faz, nós vivenciamos também. Começou de um modo bastante experimental e foi, por meio de suas inquietudes e muito conhecimento, se tornando uma das marcas mais bonitas e mais coerentes no mundo em que vivemos. Agora, depois de 11 anos, ela afirma que precisa se descolar um pouco do lado empresarial e voltar-se para dentro.
“A vida vegetal é a vida enquanto exposição integral, em continuidade absoluta e em comunhão global com o ambiente.” Emanuele Coccia, A vida das plantas- uma metafísica da mistura
Por que decidi falar da Flavia neste blog que trata de artes visuais? Porque está tudo conectado. Falar da Flavia é também falar de seus processos criativos, referências e maneiras de pensar e fazer a cor.
A cor com pigmentação natural – marca registrada de suas roupas – é um processo quase de magia, embasado em muita técnica de diferentes cantos. Não se trata apenas de colorir. Trata-se de tatear as plantas, olhá-las, entendê-las, senti-las. Sua relação com as plantas vem desde pequena por ter sido criada fora de São Paulo, onde comia flores. “Minha infância foi num pomar e o chá era a cura. Já carregava em mim a obsessão pelas plantas e cores e fui sempre estimulada a estar desperta para o meu entorno.”
“As plantas foram consideradas por séculos como a forma paradigmática da existência da razão. De um espírito que se exerce na modelagem de si mesmo.Para existir a planta deve se confundir com o mundo, e só pode fazer isso na forma de semente: o espaço em que o ato da razão coabita com o devir da matéria.” Emanuele Coccia, A vida das plantas- uma metafísica da mistura
Elas possuem seus próprios rituais. A dança entre planta e água é um lugar sagrado, espiritual… diz Flávia. Quando ela começou a se conectar com o selvagem e conheceu a obra de Emanuela Coccia, sentiu que essa artista traduzira em palavras tudo o que ela sentia.
Desde cedo na pintura, Flavia Aranha sempre se encantou pelos processos manuais de redes tecidas por mulheres no Nordeste e por outros processos e rituais hereditários, ancestrais ultrafemininos e carregados de memórias afetivas.
“Quando comecei a faculdade, fui tentar entender isso tudo com o Arraiolo. Quando vim para São Paulo estudar, me afastei das plantas e isso abriu um buraco em mim. Fui para a China trabalhar e tudo era cinza. Uma infelicidade… E foi a partir deste lugar totalmente sem cor nenhuma que entrei em uma depressão profunda. Na sequência, fui pra Índia, contrastando absolutamente com a China, numa imensidão de cor. Decidi pedir demissão com a certeza de que tinha achado o que preencheria esse vazio em mim, me reconectando com as minhas memórias afetivas. Precisei chegar no ápice do cinza chapado para poder trazer cor. Eu nunca mais na vida usei preto.”
Flavia decidiu mergulha nos estudos do chá, ainda em tons pasteis – como camomila e mate – para além das eficácias medicinais. Cozinhar uma planta passa pelo sensorial e cria uma relação do corpo com determinada temperatura. A tinta que enxergamos que atravessa a água é de uma presença absoluta. É preciso estar com o olhar atento para poder perceber e presenciar esse caminho e vivenciá-lo como um balé harmonioso que flui no ritmo da água e das plantas em seus movimentos circulares. Há ainda o reflexo de nós mesmos na água tingida de plana, provocando uma catarse, uma troca fluida de energias.
Para ela, o processo sempre interessou mais do que o próprio resultado. Descobrir uma planta, amassar, sentir, deixar secar, sujar o tecido ou o papel… toda a transformação da vida em cor vira Flavia do avesso.Materializar o processo em umapele que veste o corpo da mulher. Criar uma conexão e uma relação com as peças, corpos, texturas e sensações. A cor e a planta vão nos atravessando e perdemos o controle dessa identidade, sendo estimulados a olhar para um lugar onde há uma integração maior entre humano e natureza.
“Quando comecei, a marca era uma tela em branco. Fui colocando lentamente e de forma extremamente suave essas cores, pálidas e singelas para poder ir descobrindo meu olho para a cor. Uma sutileza em cada pigmento, na singeleza de cada planta em um lugar muito etéreo e sutil.” O olhar de Flavia foi sendo lapidado e apurado para receber cores mais vibrantes e densas até chegar no vermelho, vindo do pau-brasil, no SPFW de 2019. Flavia conta que foi uma pesquisa bastante dolorida sobre a nossa identidade. A potência e a violência habitando o mesmo espaço. O desfile serviu também para valorizar essa árvore tão potente e como sua exploração pelos europeus tentou apagar a nossa identidade ancestral, anterior à colonização. Trabalhar com as cores do pau-brasil tem algo de reação ao sentimento de impotência e, ao mesmo tempo, de reação, pois nós existimos e não podemos ser apagados outra vez.
O SPFW foi extremamente emblemático para Flavia, pois trouxe a potência e a violência da cor. “O momento do preto vai chegar… durante 10 anos as cores vieram muito mais pelo encontro com meu processo e com essas mulheres plantas do que eu como centro do desejo; muito mais pela relação e pela liberdade de me permitir mergulhar nesses universos e nessas plantas, em conexões com minhas identidades, anseios e movimentos políticos.”
“Roupa viva, cor viva” é uma expressão que resume bastante a marca como um todo. As cores naturais mostram o tempo todo como tudo é impermanente, e reage aos estímulos a nossa volta. As cores interagem com o meio, com o tempo, com a temperatura e são efêmeras. Cada planta tem sua vida, sua potência bruta, da cor em seu estado mais latente. Quando ocorre o processo do tingir, é possível absorver esses tempos vegetais.
Para estudar o azul índigo – que entrou em sua coleção há três meses – Flavia foi para o Mali estudar com Aboubakar Fofana, o artista e designer multidisciplinar conhecido por seu trabalho em revigorar e redefinir as técnicas de tingimento de índigo da África Ocidental, onde reverenciam o deus do ar e da água para poder celebrar essa potência de acontecimento do índigo, passando por infinitos rituais.
A produção tangível de Fofana é o resultado de uma prática espiritual baseada em sua crença fundamental de que a natureza é divina e é assim que ele compartilha sua prática com o público. Sua habilidade vem de décadas de aprendizado para trabalhar em harmonia com as forças da natureza. Seus materiais, suas limitações e qualidades inatas envolvem todos os aspectos de seu trabalho. Seus tonéis de índigo estão vivos. Eles contêm poucos ingredientes e nenhum produto químico industrializado. A cor vem das próprias folhas de índigo, trituradas e secas. As bactérias, cuidadosamente nutridas dentro de uma cuba, tornam acessível o pigmento de indigotina das folhas e ajudam a reduzi-lo a uma forma em que se oxide diretamente no tecido. Para Fofana, o mundo natural junto com nossa própria habilidade humana é onde começamos e é lá que terminaremos.
Para Flavia também. O ser humano precisou se relacionar com a planta para criar a cor. Ela não está pronta ali. Foi preciso se apropriar da natureza e de todos os seus processos e rituais para entender que nós viemos da terra e voltaremos para ela. Temos que lembrar que a planta era semente antes de virar planta, , cor, roupa. Nós fenecemos. Viramos terra, semente, planta. “A vida atravessa a gente. Me tira desse templo e desse ego. Na minha marca entendo que cada vez mais é sobre a vida em si.”
“A vida das plantas é uma cosmogenia em ato, a gênese constante de nosso cosmos. Emanuele Coccia, A vida das plantas- uma metafísica da mistura