Microcosmos em quartos – Ensaio Palavra-Imagem com Rochelle Costi e 11 escritores

Quartos, de Rochelle Costi
Cassiana Der Haroutiounian

Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem convidei alguns escritores que acompanhei no grupo de escrita n’A Escrevedeira para publicarem suas palavras resultantes de um exercício proposto pela querida Noemi Jaffe. Neste bimestre, estamos refletindo sobre como a fotografia pode trazer mais potência e fluidez para um texto. A série “Quartos” da artista multimídia Rochelle Costi exposta na 24ª Bienal em 1998 foi o disparo para as palavras fluírem. Cada um criou o seu microcosmo partindo das texturas, cores e histórias habitadas em cada quarto de Costi. Uma delícia de pequenos universos para serem desvendados em mais um domingo pandêmico.

Esticado tem cheiro, de Juliana Pascutti

Sempre pensei sobre a hipocrisia dos lençóis passados, apenas comparável ao excesso de uso de sabonete, que pode ou não ser pior do que o sebo da pele, pode ou não retirar uma camada de humanidade de uma pessoa. Tem o cheiro dos bebês, que muitas vezes não é cheiro de bebê, é cheiro de sabonete. Tem o cheiro dos lençóis lavados, que é o cheiro de tecido queimado, fibra distorcida pelo calor de ferro de passar e pelo detergente líquido desenvolvido para entorpecer os que gostam de cama branquinha. Tem também os olhos de banho, que são sabão, mas também são óleo, e limpam a pele sem agredir. Dizem. E podem manchar os lençóis. E existem as pessoas que passam seus lençóis, as que tem seus lençóis passados por alguém e as que se negam a passar seus lençóis. Não importa a classe social. É como a harmonia que se vê em algumas pessoas de jeans e camiseta branca calçando havaianas. Sim, mesmo de chinelos esbanjam estilo. Elas dormem em quartos sem roupa jogada. Fico me perguntando se alguém pode mudar seu destino quanto aos quartos. Se os desordenados um dia passarão a valorizar os lençóis esticados. Se os que pintam as paredes de bege um dia apreciarão gravuras, iluminação indireta, estampas. Se as pessoas que enfileiram brinquedos nos cantos dos quartos são mais felizes. Se um dia meu pé ficará menos esparramado em um chinelo de dedo. Que lençol é um conjunto de linhas, tem a ver com lingerie, linhagem, linóleo e sublinhar.

 

quatro, de Renata Luz

quatro vezes repetidas pensou desistir

quatro a hora que levantava, domingo, natal, inverno

quatro toalhas estendidas a curar o mofo impregnado

quatro irmãos a correr em uma noite

quatro repetições da mãe, suplicando que fugissem à tempo

quatro promessas a aliviar as desilusões do passado

quatro palavras para pedir maria em casamento

quatro anos escrevendo

quatro filhos desejados, de ambos os sexos

quatro paredes alvas para envolver os bebês

quatro dias faltavam

 

 

Vitória, de Álvaro Uliani

Oferta de emprego num hotel da Serra Gaúcha. Avisaram que ali fazia frio, nevava. Outros refugiados recusaram, preferindo aguardar uma oportunidade em São Paulo. Ayo vinha da Nigéria, onde era engenheiro. Para alguns, trabalhar de faxineiro seria uma humilhação, mas ele aceitou na hora; queria recomeçar.

A pastoral ofereceu a passagem de ônibus e um ticket-refeição. Acostumado à fome do dia-a-dia, aquela que faz roncar a barriga, tinha medo mesmo era daquela outra, que gruda as paredes do estômago, tira todo o ânimo e dá vontade de morrer. Não comeu na viagem e guardou o vale para quando sentisse fome de verdade.

Mostraram o alojamento. Dois beliches triplos, um pequeno varal. O banheiro no corredor, compartilhado. Recém chegado, Ayo dormiria no beliche mais baixo. Vestiu o uniforme: tênis preto, calça cinza e camiseta branca; não forneciam casaco. Na cantina pediu pão com queijo e café. Não aceitaram o vale da viagem, mas que ficasse tranquilo, o valor seria descontado do primeiro salário, assim com o a hospedagem, o uniforme, a roupa de cama e o uso do banheiro.

O treinamento começaria no mesmo dia. Atravessou a passos rápidos o passeio do alojamento até o hotel e encontrou a equipe na entrada de serviço para conhecer os apartamentos.

– Este é um apartamento da categoria Lux Imperial – explicou o supervisor ao abrir a porta.

Os olhos de Ayo brilharam: tapete persa, cama de casal, seis travesseiros, mesas de cabeceira, garrafas para água e café, duas poltronas. Cristaleira com peças de porcelana. – Ainda bem que não fui pra Cuba, comentou, admirando a gravura na parede. – Um dia vou dormir neste quarto.

A conquista veio depois de alguns meses; foi só ter um pouco de paciência. O banzo levou a alegria, o apetite e o emprego dos companheiros, mas Ayo se adaptou ao frio, resistiu, trabalhou duro. Naquele sábado, acomodou a toalha em sua nova cama.

 

Nossa Senhora, de Otavio Toledo

“Nossa Senhora

das coisas impossíveis que procuramos em vão

vem soleníssima

soleníssima e cheia

de uma oculta vontade de soluçar”  ( F.P.)

 

Nossa Senhora,

Sofri sem dores na cama estreita, esperei a luz e o milagre, aguardei em vão. Da vida certa, das coisas regradas, do comedimento , fugi. Ave Maria me deu a graça e hoje tranquila  me oriento livre no vale das trevas. Abençoadas sejamos todas, degredadas filhas de Eva. Das angústias, do tédio e do medo me esquivei e hei de perseverar. Em direção ao Sagrado me esgueiro, ao lado da cama à conversa truncada, numa noite habitada, sucumbi. Santa, santa, santa é a Senhora Deusa do inverso, o Céu e a terra proclamam a vida inglória. Madrinha das alturas livrai-me do apego a minhas coisas pequenas. O que couber na mão eu levo, e que as reminiscências repousem inofensivas no passado. Levo o tecer e o agasalhar, não por arrogância, não para  mostrar , levo apenas por Sua glória. E não mencionemos o Santo nome em vão, o caminho é puro como seu manto, mas a castidade nunca nos trouxe a paz. Falo do momento certo, mesmo agora que a todos recebo, sua imagem conservo, seu perfume me acompanha e permanece. Obedeço a desígnios que nem entendo, respondo aos dos outros pois não reconheço os meus. Eles perseguem o fim do desejo, não percebem o entusiasmo que perdura, nesta insana procura nunca se estará tão longe de si, mas a sua bênção há de nos alcançar. Que Ela sempre acolha, interceda e acompanhe a cada um de nós, que não nos deixe cair, mas subir ao céu, agora e na bem-vinda  hora da nossa morte, Amém.

 

Em setembro de 1949 Irmã Imaculada desapareceu da clausura, os céticos acreditam que tenha saído por esta janela do terceiro andar. O quarto é conservado intacto e até hoje fiéis ali acorrem em busca de sua intercessão.

Neste quarto em Paraisópolis foi achada uma antiga imagem de Nossa Senhora. Ao ser encaminhada para a Igreja da Eterna Misericórdia, quebrou-se numa  procissão. Entre os cacos, foi encontrado um bilhete com o que se acredita ser a letra da religiosa. No verso do papel rasgado, um pedaço de oração : “Vem dolorosa, Mater-Dolorosa das angústias dos tímidos , Torre de Marfim das tristezas dos desprezados, mão fresca sobre a testa em febre dos humildes. Sabor de água sobre os lábios secos dos cansados , quando tu entras, baixam todas as vozes”

 

Motorhome, de Marina Di Lullo

Não acredito que fiquei aqui e ele foi à praia, começamos a milésima discussão e a mala pronta. Tomei um susto da primeira vez, nunca vi uma cristaleira no quarto, com miniaturas de relógios trazidos pela família dele de viagens pra Europa Ocidental e Oriental (pra que diferenciar assim, fala Europa e pronto), será que esse lustre de velas de castiçal vai cair, ele foi tomar uma ducha. E a bandeja, com garrafas de cerâmica pra água ficar gelada e remedinhos alinhados, parece quarto de hotel ou asilo. A cortina igual a um museu que visitei em Milão, estava mais interessada na barba cerrada  e no tamanho dos lábios, não faz a barba tá, tanta arrumação, não seria o quarto dos pais? Eu morava na Liberdade, com amigas numa república de estudantes,  13 anos e só a colcha mudou.

Olha, não mexe na cristaleira. Se não vier buscar, vou dar embora. Você sabe que minha mãe só tinha vago o quarto que recebe as crianças, dei uma adaptada, consegui alinhar as camisas por cor. Vou dar um jeito de pegar.

Não aguento mais nada disso, a médica ayurveda disse pra pintar o fundo de laranja, cortinas no mesmo tom, pedras brasileiras na parede, nada de móveis escuros e pesados, trazem mau agouro. Pensei que você gostasse, pelo menos da cama. Você me dizia que era de mouros, como meus olhos. Não gosto mais, os arabescos viraram lanças. Que drama! Não quero mais cabeceira, nem criados-mudos caretas. E onde vai guardar jóias? Que jóias? Antes delas, vinham as grelhas da Polishop pra hambúrgueres. O anel de pedra azul turquesa, lembra, te dei no aeroporto? Fingi que fui buscar um livro e pedi pra esperar. Sabe Mor, to gostando de ficar num espaço menor. Não me chama assim, insisti pra gente mudar e fiquei no dinossauro da casa dos seus pais, vamos ter que vender, a loja não vai aguentar com a pandemia. Podemos pensar nisso depois? Não, já procurei dois corretores, estão avaliando.

Tem outra coisa, não quero mais trabalhar na loja de tapetes. Resolver a venda da casa, os problemas dos filhos nas aulas online, assuntos da loja, o que jantar, tá pesado sozinha. Pois é, achei um lugar na praia, dá pra montar um restaurante bem charmoso. Em plena pandemia? Vou fazendo delivery por enquanto. Melhor a gente parar por aqui, vem buscar a cristaleira até segunda.

 

RETIRO, de Iara Biderman

Fica tranquilo. Só queria te dizer que está tudo como você deixou. Eu deixei. A cama arrumada, coração, como você gosta.

Sei que a colcha não está muito bem passada, mas dei meu melhor, juro. Sempre dei, pode acreditar? Tento. Fazer surpresas para você. Nunca tive muito tempo para isso, ou não sabia aproveitar. E daí você saiu daquele jeito. No começo não entendi, achei que estava irritado, que boba. Era para me dar tempo de deixar tudo assim. Do jeito que você gosta, mas nunca totalmente. O mosquiteiro, para quê? Você não faz ideia de quantos pernilongos, nunca é picado, só eu. Mas não podia arriscar com o bebê. Daria minhas pernas, braços, coxas, bunda e até a cara para ser picada no lugar do bebê, mas não há acordo com pernilongos.

Estou tranquila, coração, aqui não tem insetos. Incenso, velas, funcionam, viu? Só não pode deixar aceso a noite inteira, imagina um acidente. Às vezes penso nas consequências. Até tirei o ventilador da tomada para não dar um curto, deus me livre. Deixei para você ligar quando quiser. Não parece, mas eu te entendo, um dia você ia botar fogo na casa. Deixei para você. O mosquiteiro não, você nunca é picado. E não foi por causa do mosquiteiro, a médica garantiu, bebês não sufocam assim. Coração. Alguma coisa já estava estragada antes. Mas a médica disse que não é culpa de ninguém, acredita?

Retiro. Eles chamam aqui assim.

Tem muita gente, você ia odiar. Nem sempre. Todos têm um coração bom, você entende? Pode pensar, mas não é isso, juro. Nem quando o mestre vem fazer a massagem. Um dia te explico, se der. As mãos do mestre. Precisa saber os pontos do corpo e usar óleo, cheira bem e ainda espanta pernilongo, melhor que repelente. O quarto é quente e eles não usam ventilador. O sol numa parede, corações na outra. Na cama não, é uma colcha indiana, mais fácil de passar. Um dia o mestre vai me ensinar a fazer massagem, posso até ganhar dinheiro com isso. Agora não, preciso relaxar primeiro.

Deixei a janela aberta para entrar um pouco de luz. Se chover, pode fechar.

Aqui eles nunca abrem as cortinas porque os vizinhos são muito curiosos. Sol pode entrar. Compraria uma cortina para você, se tivesse coração bom. Estou aprendendo, o mestre disse que quando eu estiver pronta, pode me dar um bebê. Somos todos uma família aqui. E ninguém come carne. Até você ficaria tranquilo, mesmo odiando paredes coloridas e sol entrando no quarto.

Mande lembranças para sua mãe, quando fizer as pazes com ela. Deixei um estrogonofe no congelador, precisa comprar batata-palha.

 

Gato, de Luciana Miranda Penna

O quarto era um gato da construção, um abrigo puxado debaixo da laje, era um resto da garagem, sem janelas, submerso em pó, fiação, interruptores e luz indireta. Era feio bonito de se ver, a madeirite pintada de rosa encarnado aquecia tudo por dentro, e contrastava com o verde translúcido da cápsula dormitório, da bolha, da célula original, do nicho, da mônada, do escudo, daquela caixa feita de sarrafo de madeira e tela de mosquiteiro hermeticamente fechada, daquela câmara sancto sanctorum, daquele berço de criança grande, daquela nave mãe que embalava seu sono tanto e tão bem, na justa medida em que o problema da moradia aumenta as chances de ser morto.

 

FIQUE EM CASA, se puder, de Hanita Bergmann

Ao projetar um loft, o primordial é fazer da cama, um nicho, um canto especial. Um dossel, um mosquiteiro ou até mesmo uma tenda de vigotas de madeira aumentam a privacidade e o aconchego. Cores quentes estimulam, as frias acalmam; uma mistura de ambas é o equilíbrio desejado. Para a cozinha, uma bancada é mais do que o suficiente; elétrica e hidráulica aparentes dão o charme de um verdadeiro loft novaiorquino. Aproveitar o pé direito e o vigamento é um toque esperto e prático – tudo à mão mas não atravancado. Lâmpadas soltas, presas casualmente ao fio, dão uma mobilidade à luz e dinamismo ao ambiente. O resto – o indicado nesse caso – é uma decoração clean e com personalidade; abuse do seu gosto pessoal, mas sempre com moderação.

Deita e sonha com os pássaros voando no mar. Vira de lado e olha a foto dessa eu lindinha com aquele sorriso aberto prá você. Tão aninhado, essa cabaninha de samburá vai dar conta do seu sossego, dá até prá dormir de cueca. Não tá frio aí? Só short e camiseta pendurado? Deixou tudo nas caixas, então tira prá arejar. Esse rosa é lindo, combina com o boné e com a minha cortina. Tô vendo que aprendeu a deixar o chinelo arrumado, de frente pro colchão – nunca esquece disso tá? Só de frente, não de lado. Não vejo a hora de ficar aí abraçadinha, você acha que cabe o meu travesseiro de espuma forrada? Lembra que eu tenho minhas coisinhas também tá? Meus bichinhos, os vidros de perfume, o quadro da vó e aquelas outras coisinhas. O jarro cromado que a gente ganhou, já sei onde colocar, fica na sua lata amarela no pé da cama. Essa antena é da TV? Pega sem bombril? Ai sei lá, tudo tão arrumado. A minha felicidade é do tamanho dessa sua toalha; comprou uma prá mim também, né?

PL#188 Bed Alcove – “Don’t put single beds in empty rooms called bedrooms, but instead put individual bed alcoves off rooms with other nonsleeping functions, so the bed itself becomes a tiny private haven”.

 

A obra, de Angélica Bevilacqua

Verde e rosa, não a escola de samba mas o corte de tecido, o presente de aniversário dado pela minha madrinha, sua irmã, folhas verdes com rosinhas que eu odiei. Eu tinha onze, doze anos? A mãe fez um vestido que me conformei em usar, não tinha escolha, como não existia alternativa para o porão da obra aonde fomos morar, as divisórias de saco de farinha caiadas, as vigas do teto que me davam pesadelo, o concreto aparente com aqueles ferros vergados em todas as direções, o chão cimentado desde a cozinha até os dois quartos divididos pelo guarda-roupa ameaçador.

O porão foi a nossa moradia mais espantosa, até por estar debaixo da casa dos sonhos que tivemos de abandonar, construída por você, agora ocupada por gente de aluguel, você endividado, o senhor, nós, a alegria italiana da mãe, sua casmurrice portuguesa, nossa cozinha na sala, a televisão na frente do sofá, o janelão único sem vidraça protegido por toras de madeira chumbadas na parede, banheiro de tábuas de andaime no lado de fora (quando chovia tinha uma passarela pra gente não pisar no barro), o jornal como papel higiênico, o mau humor da mamma ao defender a higiene das meninas, acho que a gente começava a menstruar.

Você, o senhor, vivia fora do alcance das nossas reclamações, imagino que lamentando também, vai saber, impenetrável como o concreto do teto, o amor jamais expresso, sua tenacidade, o orgulho em ser o-fi-ci-al de pedreiro, a recusa em ter patrão, os negócios dando certo só depois, me lembro da granja, da metalúrgica, o depósito de ferramentas no fundo da chácara feito com latas de óleo recheadas de cimento no lugar de tijolos, a sobra dos seus projetos. E tudo foi assim.

Tudo me veio junto quando dei com o quarto verde e rosa da fotografia. Perdi o ar. Você, o senhor, vai rir de mim, mas eu queria ser essa pessoa, esta que transforma o amor em alicerces, pano em parede, andaime em berço, varal em guarda-roupa; a massa viscosa de palavras que vivo de excretar não serve para proteger as crianças das picadas dos pernilongos.

 

O Pronome Possessivo e a Primeira Pessoa, de Renata Valias

Quando a gente vai sair pra comer, não ligo que você escolha o restaurante, eu como de tudo. Também não ligo da sua playlist tocar mais do que a minha aqui em casa, ou no carro, e tá tudo bem da gente ir mais pra praia do que pra montanha, mesmo não podendo tomar muito sol. Eu fico bem na sombra. Também não me importo de assistir mais séries policiais do que históricas, nem de não comprar doces por causa da sua diabetes. Não ligo porque, em parte, sou tranquila, você sabe, paz e amor mesmo; em parte porque hora ou outra, sozinha no meu sossego, fico livre pra escolher o que vou comer ou ouvir, pra pegar o carro e dar um pulo em Cunha, cheirar lavanda, cultivar meus gnomos e matar toda minha vontade de doce. Olha, eu faço questão de pouca coisa, tô resolvida com boa parte dos meus problemas, é claro que eles continuam surgindo, sempre inéditos, mas por isso mesmo não faz sentido desperdiçar energia com o que já perdeu importância e, vou te dizer, disputa de poder por cardápio e controle remoto, meu amor, foi-se o tempo.

Você sabia que a terceira principal causa de separação entre casais é reforma ou construção da própria casa? Só perde pra infidelidade e falta de dinheiro, dá pra acreditar? Eu também fiquei surpresa quando li essa pesquisa, mas desde que a gente resolveu morar junto, começou a fazer algum sentido. Não, não tem nada de ameaça aqui, não sou dessas, só tô querendo que você acompanhe comigo o que andei pensando. Você se lembra do seu comentário quando entrou no meu quarto pela primeira vez, lá na república? Não seja irônico, assim a conversa não rola, a boia do Dino nem existe mais. Perguntei se você se lembra do comentário que fez. Pois eu lembro bem, porque fiquei feliz, me dei conta de que você era uma pessoa sensível – você disse: “nossa, que colorido! deve ser impossível ficar triste neste quarto”. Impossível não era, mas é verdade que construí um templo com meus recortes, minhas cores, minhas músicas, as conexões com o que me fazia bem, sem ainda nem entender porque me faziam bem – meu primeiro espaço de liberdade desde que saí de casa. Digo, da casa dos meus pais. Já reparou que por muito tempo, às vezes pro resto da vida, a gente chama a casa dos pais de nossa? Não é não, parece mais um segundo ventre, eu acho, as coisas funcionam sem a gente se envolver e as cores das paredes já vêm escolhidas; é cômodo, mas não é nosso. E quando você disse que ia pintar a nossa casa toda de branco, porque é mais barato e combina com tudo, eu pensei – isso, não! – que não ia voltar a morar numa casa de paredes brancas, de jeito nenhum.

É óbvio que não vou negar a você o que estou exigindo pra mim, me diga suas cores preferidas e a gente encontra alguma em comum. Acho que você vai gostar de ficar com o lado da cama mais perto da janela, pra ler com claridade nos finais de semana. E eu aproveito essa parede aqui pra minha coleção do Sagrado Coração.

Como você faz esse sol brilhar sem parar em cima da nossa cama?

 

Adeus, de Cassiana Der Haroutiounian

Os olhos ainda fechados viviam as memórias e as agonias provocadas pelo aroma do café recém coado esparramado pela casa. O vinho da madrugada azedo repousado na taça. Virou para o lado oposto da janela tentando evitar a luz… impossível. Cobriu os olhos com a roupa dela ainda cheirando a tabaco. Passos silenciosos; o barulho da água escorrendo no ralo junto as imagens da última noite. Era o fim? Ou era o início de tudo? Que tudo? Aquele tudo que cabe em uma hora, minuto, segundo. Quando o tempo para. O tempo para? A água parou, os passos silenciosos em melodia com a madeira velha da casa se aproximavam. A porta abriu e fragmentos solares atravessaram o microcosmos cor de romã onde o tempo congelou há 15 minutos. O tempo para.  Ela entrou no quarto ainda com algumas gotas escorrendo pelo corpo. Café, sabonete, gozo. De ontem. De hoje. Corpo inundado da manhã de um não amanhã.  “Nico, acorda! Você vai perder el vuelo.” A porta bateu e de repente tudo se tornou poroso. De saudade, de dor, de mágoa, de adeus.

 

 

 

 

 

 

Erramos: o texto foi alterado

O nome da artista é Rochelle Costi, e não Rochelle Conti. O texto foi corrigido.