Bilhetinhos de despedida – Ensaio Palavra-Imagem com Leda Cartum e Anna Reivilä
Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem convidei a escritora Leda Cartum para se deixar atravessar pelas imagens da finlandesa Anna Reivilä. No fim de semana passado, rodeada pela Serra da Mantiqueira, fui impactada pelo livro “O Porto” de Leda. Sabe aquele livro que você grifa todas as páginas? Faz anotações em tudo que é canto e tem vontade de guardar cada palavra? Foi este pra mim. Cartum é também autora de “As horas do dia – pequeno dicionário calendário (7Letras, 2012)” e “Bruno Schulz conduz um cavalo” (Relicário,2018). Em sua série Bond, Reivilä combina elementos fotográficos, esculturais e performativos, usando a técnica tradicional da corda para amarrar pedras, árvores e outros elementos da paisagem, representando objetos transitórios. Anna faz uma declaração sobre a relação efêmera entre os humanos e o mundo natural como uma ponte entre a natureza escandinava e a tradição japonesa. Ela explica que usar cordas como linhas é sua forma de desenhar tornando visíveis as conexões entre os elementos. A combinação entre as duas artistas em seus silêncios, em suas imersões no tempo e em tanta beleza é de marejar os olhos, não sei se pelo que estamos vivendo, pelos tempos do mundo ou pela urgência de coisas belas… Leda Cartum e Anna Reivilä não se conhecem, mas criaram um diálogo inventado extremamente afinado e rodeado por afetos.
Bilhetinhos
Nós gostávamos de deixar bilhetinhos quando nos despedíamos. Isso foi há muito tempo, foi há mais de dez anos. Escrevíamos o recado que seria entregue ao final do encontro seguinte: eram pedaços pequenos de papéis com letrinhas apertadas nos quais dizíamos coisas muito importantes, e que eram dobrados sempre várias vezes. Trechos de livros, frases que tínhamos formulado depois de alguma conversa, descobertas solitárias a partir de experiências conjuntas, medos, desejos que queríamos compartilhar mas não sabíamos como – esses bilhetes eram uma solução possível para manter o nosso diálogo depois que nos separávamos. Estar longe mas imaginar e aos poucos preparar o momento em que nos veríamos de novo. A cada vez que nos víamos, as coisas eram sempre muito intensas, muito sérias: tudo era levado com uma gravidade que chegava ao insuportável, e os bilhetes eram uma maneira de continuar depois do fim o que de fato não tinha fim. Falávamos mesmo isso nessas cartas minúsculas: que, entre nós, nada nunca terminava, nada nunca tinha forma nem limites possíveis. Talvez por isso fizéssemos papeizinhos tão pequenos: porque não tínhamos como fazer bilhetes gigantes, já que eles não caberiam nos bolsos e nem poderiam ser entregues de maneira tão discreta e tão secreta quando nos separávamos.
Hoje eles sobraram guardados em uma caixinha de madeira. São muitos bilhetinhos, muitos mesmo, de vários anos diferentes. Hoje, para escrever sobre isso, eu abri a tampa da caixa. É como abrir um baú que ficou décadas no sótão de uma casa abandonada, que exala um cheiro forte de todo o tempo que ficou fechado – e que, ao ser aberto, faz subir uma bolha antiga que estoura no ar pelo contato agressivo com a atualidade. Existe mesmo um mundo todo ali dentro, feito de pedaços de caderno, papéis coloridos, dobraduras, letras cursivas, datas entre parênteses, barbantes amarrados, desenhos e rabiscos; eu desdobro esses bilhetes e sinto que estou entrando num túnel muito comprido.
A sensação de agora é parecida com a de entrar num museu de objetos pré-históricos, ou examinar desenhos rupestres em uma caverna. São tempos remotos que já se separaram do presente, e que agem sobre o agora de forma pouco direta; são resquícios, fósseis soterrados por camadas mais recentes das nossas vidas. Foi você quem disse uma vez, não há tanto tempo assim, sobre a sensação de voltar ao que sobrou dos anos que vivemos: que essa enfim se tornou uma adrenalina sem medo. Como a montanha-russa a 100km por hora, ou como saltar do abismo, mas amarrada à corda de bungee jump.
Mais do que simplesmente terem adormecido, as emoções de tudo o que nós vivemos agora estão embaixo de um sono de milênios: toda a nossa cidade iluminada e numerosa foi enfeitiçada pelo distanciamento do tempo e dorme embaixo de tantas camadas que parece impossível acordá-la, mesmo que eu agite a poeira dos bilhetinhos. Desdobro esses papéis e leio a sua letra, que reconheço tão bem, posso ver mesmo a sua mão pegando a caneta para escrever, apoiando-a nos dedos desse jeito meio torto; mas não consigo encontrar mais as pequenas explosões internas que essas palavras já produziram em mim. Pode ser que lá longe essas explosões se façam sozinhas, por conta própria, em algum ponto do espaço, já descoladas de mim e de nós; mas agora não posso mais alcançá-las nem sentir o seu impacto por dentro do meu corpo.
Essa nossa troca de bilhetes nas despedidas é uma das coisas que já vivi que mais se aproxima de algo que eu poderia ter lido nos livros ou visto nos filmes. Preparar esses papeizinhos era um trabalho de ordem totalmente diferente de qualquer outra das atividades que eu fazia: planejá-los na cabeça, executá-los com a minúcia de quem conserta relógios ou repara joias preciosas ou lapida diamantes; imaginar o momento certo de entregá-los, às vezes deixá-los escapar disfarçadamente dentro do seu bolso ou na lateral da sua mochila. Saber que, assim que eu virasse as costas, teria guardada comigo a minha parte dessa troca – e esperar a hora e o lugar certos para abri-la e para lê-la.
Acho que de certa forma essa era a única saída possível para nós conseguirmos dizer tchau. Tínhamos muito medo das despedidas, como se o mundo todo criado entre nós e para nós pudesse se desfazer assim que nos separássemos: as coisas e as pessoas, para além do que éramos, pareciam ameaças à nossa relação. Desenhávamos tantas formas absurdas quando estávamos dentro de um quarto: as paredes, a luz amarela do abajur, as sombras que se formavam, seu lustre em forma de estrela, as conversas e olhares, o som dos carros na rua, tudo se cruzava e contornava a nossa cama – era difícil amanhecer. O quarto virava um infinito de possibilidades, de caminhos inéditos, frases e cores que só eu e você, mais ninguém, saberíamos traçar. Depois íamos embora e tudo se desmanchava, não havia segurança em nenhum lugar que fosse externo à nossa presença: éramos muito novas, éramos duas meninas.
Mas, se tínhamos alguma coisa para ser entregue quando os nossos encontros enfim chegavam ao fim, então podíamos até mesmo desejar a despedida: qual seria a surpresa que viria dessa vez? O que estaria escrito e como seriam as dobras desse novo bilhete que ficaria guardado dentro da minha mão cerrada enquanto eu caminhava de volta para casa? Eu não lia de imediato. Às vezes deixava passar muitas horas, num jogo com a minha própria ansiedade: queria ver o quanto conseguia segurar, ou queria esticar até o limite máximo o elástico da sua presença. Enquanto eu não lesse o que estava escrito ali no papelzinho colado ao meu corpo, enquanto isso você ainda de certa forma estava comigo, pairando em meu ombro, me espiando invisível. Assim, também, enquanto estávamos juntas, uma cumplicidade não combinada fazia com que nos calássemos a respeito dos bilhetinhos, que sabíamos já estarem prontos em algum lugar, esperando a hora certa de serem entregues. Não falávamos sobre isso. Era um assunto secreto até para nós mesmas, um nível mais profundo da nossa comunicação, que não cabia na fala, que só podia ser feito através de letrinhas espremidas em papéis de poucos centímetros.
Hoje, não consegui ler todos os bilhetes da caixinha. Parei depois de ter aberto uns dez ou quinze. De certa forma, à medida que desdobrava cada um dos papéis, tentando não amassá-los nem marcá-los, comecei a me sentir um pouco como uma invasora. Uma mulher imensa com mãos gigantescas entrando no mundo de Lilliput, onde as coisas convivem pequenas entre si e se assustam com a chegada dessa presença enorme e estranha. Não sei se tenho o direito de entrar no meio dessas lembranças. Eu me senti como se fosse uma terceira pessoa, diferente de nós que trocávamos bilhetes, e não fui autorizada a escutar esses sussurros muito baixos nos ouvidos. Pude ver aquelas meninas incomodadas comigo ali: elas tinham tanta coisa para dizer, e só encontravam a forma de dizê-las quando se dirigiam uma à outra; parecia que só assim as palavras se encaixavam nos lugares onde deviam estar e formavam as frases certas, os encadeamentos perfeitos. Eu hoje avisto essas formulações daqui de muito alto, do alto dos mais de dez anos inteiros que me separam delas. Olhando daqui, de repente percebo que junto com os bilhetes parece que moram também, dentro da caixa, nós duas pequenininhas, que dormíamos por entre os papéis e agora apertamos os olhos, desacostumadas com tanta luz invadindo as paredes de madeira.
Fechei a caixa e a guardei de volta embaixo da minha cama. Antes tinha até pensado em copiar neste texto algum trecho de bilhete, algum dos recados mais curtos; agora essa ideia me soa totalmente descabida. Como eu poderia trair dessa forma a confiança de nós duas? Acho que o passado acabou me dando uma bronca. Eu aceitei – na verdade, até gostei de recebê-la. Costumo olhar para tudo o que nos aconteceu e sentir certa vontade de poder ir até lá, visitar essas meninas para conversar com elas, consolá-las, explicar que as coisas não precisam ser assim tão intricadas, intensas, traiçoeiras, dizer que a vida pode ser mais segura e que elas podem ser mais centradas; contar que os dias logo vão ser mais fáceis, menos graves, mais leves, mais possíveis. Mas de repente entendi também que elas vivem ainda trocando seus bilhetinhos, finalmente sem medo nenhum; e que posso deixá-las, não tenho mais que me intrometer assim numa coisa que é só delas, e continua um segredo. Quanto mais eu permitir que essa troca se mantenha por si mesma, mais elas duas em seu quarto também vão ficar tranquilas, também vão dormir em paz.