Cantos de um Livro Sagrado – uma conversa dos diretores com Cao Guimarães
Este Entretempos é um pouco diferente. Eu e Cesar Gananian estamos lançando nosso novo filme, dirigido, produzido e sentido na Armênia. “Cantos de um Livro Sagrado” terá sua pré-estreia online amanhã, 24/04, dia que marca os 106 anos do início do genocídio armênio perpetrado pelo governo otomano em 1915, crime ainda negado pela República da Turquia. Conversamos com o cineasta e artista plástico Cao Guimarães sobre suas impressões sobre o filme, ele no Uruguai e nós em São Paulo.
Com a chamada “Revolução de Veludo” ocorrida na República da Armênia em 2018 como cenário, o filme recria em 5 cantos – Microcosmos, Eu, Casa, Sociedade e Macrocosmos – a sinergia que gera as revoluções.
Cassi: Quero só ver como vou publicar esse papo, Cao.
Cao: Publica como se fosse uma conversa, Cassiana
Cassi: Boa, Cao. Ótima ideia.
Cao: Eu acho que é um filme cheio de camadas e narrativas. Achei tão bonita essas relações entre o microcosmos e o macrocosmos em coisas ordinárias da vida: coisas, a princípio, “banais” e as grandes coisas da vida. Pequenas revoluções cotidianas e grandes revoluções sociais.
Vocês tiveram que se distanciar de vocês mesmos para fazer esse trabalho. Queria que vocês falassem um pouco mais sobre isso. Achei bonita a forma como vocês estruturaram os 5 cantos: Microcosmos, Eu, Casa, Sociedade e Macrocosmos. No primeiro, existe a fábula maravilhosa e achei lindo esse começo. A guerra, a paz. As gerações mais velhas e as mais novas caladas para não machucar os sonhos dos pais, a utopia comunista.
Cesar: A Cassi chegou em julho de 2018 com essa ideia depois de todos os acontecimentos na Armênia e com a imagem de uma pedra sendo cortada. Programamos uma viagem para o país em outubro e eu falei “A gente precisa elaborar isso. Não vamos chegar lá e filmar. Vamos conhecer, saber o que aconteceu, nos estruturarmos e programar as filmagens para depois. O roteiro nasceu em São Paulo, depois dessa viagem, e decidimos que todo o filme seria em armênio.”
Cassi: Conhecemos um roteirista por lá e a fábula do primeiro canto partiu de um conto dele, já antigo. E juntos fomos chegando no embrião dessa sequência. Ele sempre disse que é um conto sobre a decadência moral do país pós-soviético. A culpa nessa sociedade cristã ortodoxa sempre acontece. O que você definiu sobre o primeiro capítulo é maravilhoso!
Cao: É a frustração de uma geração mais velha por não ter dado certo uma viagem utópica. Depois entra esse capítulo ‘Eu’, do individualismo, que é o oposto do comunismo. Queria saber de vocês por que na hora do ‘Eu’ tem a imagem da pedra e das ruínas?
Cesar: Esse é um dos capítulos que demoramos para chegar. A ideia era ser uma abertura poética na qual cada espectador construísse a sua metáfora. A criação e a destruição. Existe um provérbio armênio de que quando Deus construiu o mundo, as pedras que sobraram na Sua peneira ele jogou naquela região e assim surgiu a Armênia.
Cassi: O país é inteiro rodeado por montanhas. Em todos os cantos existem essas fábricas que transformam esse macrocosmos ‘montanha’ virar esse pedaço de pedra que se torna uma construção do país. E claro, existe também a relação com o Sisifo. A Armênia carrega fardos milenares e essa coisa geracional está muito ligada a Armênia. ‘Ancestralidade’ é uma palavra muito forte no país. Nós, como imigrantes, carregamos essa história. Os armênios sempre estão na questão de sobrevivência: o genocídio em 1915, o terremoto em 1988, a Guerra de Nagorno-Karabakh contra o Azerbaijão.
Cao: Qual a população armênia no país?
Cesar: Mais ou menos 3 milhões. Mais 10 milhões espalhados pelo mundo.
Cao: Nossa. É quase o Uruguai. E vocês são dois desses 10 milhões. Bom, agora voltando para o filme, eu queria que vocês falassem um pouco sobre o capítulo ‘Casa’. Os móveis, elas vazias, um mood comunista… Achei interessante o discurso sobre aquelas lugares vazios, tanto de Nikol Pashinyan, o revolucionário,quanto de Serj Sargsyan, que renunciou. Existe outra camada que são os três senhores jogando gamão e discutindo a revolução. Existe essa coisa das mãos no filme e é muito simbólica, né?! Eu gostei muito das pequenas nuances no filme. Me falem um pouco sobre esse pano de fundo dos cientistas no último capitulo ‘Macrocosmo’ e dessa troca de cartas entre os dois.
Cesar: Mergulhamos nas teorias do cosmólogo Mario Novello para criar esse diálogo por trocas de cartas, para trazer a criação do início do universo por meio da energia da transformação.
Cassi: Depois de uma pesquisa sobre observatórios no país, achamos este de Byurakan, que foi o segundo maior da União Soviética. Tinha essa decadência ali vivida por esse casal, em um país que se desintegrava.
Cao: Tem essa coisa do sonho dele, do início do mundo. Algo que nasce dentro dela e você começa a relacionar com a revolução. Parece que ela está grávida de uma nova utopia, de uma nova possibilidade social.
Cassi: Buscamos fazer um filme que permitisse o espectador entrar em um transe. Esse filme é mesmo um filme para ver em grupo, num ato ritualístico.
Cao: O ‘Eu’ em armênio é ‘tu’, né?! Você lê ‘tu’, se tentamos ler o alfabeto armênio com o referencial que temos. Totalmente paradoxal. Nossa, eu passei o inverno aqui no Uruguai, no meio da pandemia, escutando duduk (instrumento armênio).
Cassi: E você saiu vivo Cao? Parabéns!
Cao: Graças ao duduk. Gosto de acentuar a melancolia da coisa.
Cassi: A Armênia é melancólica. Existe uma dor em todas as camadas do povo e do país.
Cao: Então é a perfeição para vocês. Ter essa bagagem melancólica morando do Brasil.
O carnaval no filme, com as manifestações e o os desfiles juntos… aquelas imagens das pessoas em transe é maravilhosa. Eu gostei da evolução do ‘eu’, para ‘casa’ e para ‘sociedade’ e lembrei muito do filósofo francês Georges Perec e seu livro “Species of Space”, que vai do micro para o macro, do travesseiro até o cosmos. No filme, achei muito interessante essas interrelações que vocês constroem entre microcosmos e macrocosmos. Esses três fundamentos sociológicos, três instituições que vocês propõem, são maravilhosos. Fiquei muito intrigado com a pedra e fiquei viajando como se o indivíduo, que simboliza muito essa ideia do liberalismo e do capitalismo, oposto ao comunismo que a Armênia viveu por anos, já em ruínas. Como se acabasse o sonho utópico comunista e entrássemos em um mundo capitalista se destruindo. Claramente, o filme é interessante por isso. Tem um tanto de informações e o filme se faz diferente para cada espectador. Os brasileiros dançando com aquelas máscaras, aqueles rostos, as emoções, é super bonito relacionar como se fosse o ponto de fusão de um átomo. Pensando na ideia do micro com o macro, é como se fosse explodir, na ideia da revolução. Da força que existe na sociedade, na possibilidade de união, cisão, fusão e explosão.
Obrigada, Cao querido! <3
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Nos vemos na sessão!