Cantos Cósmicos – Ensaio Palavra-Imagem com Mario Novello e fotos da Nasa
Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, eu convidei o Mario Novello, cosmólogo e Professor Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas para escrever baseado em imagens do cosmos feitas pela Nasa. Ele formulou a “Teoria do Universo Eterno”, sem início e sem fim, que contraria a teoria do “Big Bang“ como o marco zero do Universo. Novello, com todas as suas teorias extraordinárias, lindas e científicas sobre o cosmos, tornou-se uma das figuras mais importantes nos meus últimos dois anos durante o processo criativo do meu mais novo filme “Cantos de Um livro Sagrado”, codirigido com Cesar Gananian. Desde que mergulhei em seus livros (“O Universo inacabado: a nova fase da ciência” publicado pela N-1, “Do big bang ao universo eterno” e “O que é cosmologia? A revolução do pensamento cosmológico” pela editora Zahar), observar as estrelas e pensar sobre o universo se tornou ainda mais potente em mim. Novello foi o consultor do filme e escreveu este texto depois de assisti-lo pela primeira vez. O presente artigo se baseia em seu recente livro “Quantum e Cosmos (introdução à metacosmologia)“ a ser publicado em breve. Que coisa linda tê-lo aqui e poder compartilhar um pouco do tanto que ele sabe.
1- UNIVERSO CÍCLICO
O universo estava condenado a existir.
Como entender essa afirmação?
A cosmologia, ao longo dos últimos 100 anos, evoluiu enormemente. Em particular, nos últimos 30 anos essa evolução foi impressionante.
Vamos explicitar alguns subsídios para entender esse processo que alçou a cosmologia ao centro da ciência nos dias de hoje.
A cosmologia de que ora trato tem uma data de nascimento precisa: 1917, quando então Einstein aplicou sua recente teoria da gravitação, a relatividade geral, ao universo, produzindo, assim, o primeiro cenário cósmico da ciência contemporânea.
Mas por que, poderá se perguntar o leitor, ao comentar sobre a cosmologia, sobre a evolução do universo temos que falar sobre a força gravitacional?
A explicação é simples. Os físicos mostraram que é possível entender todos os processos físicos na Terra admitindo somente a existência de quatro forças fundamentais. Dentre essas quatro, duas são de natureza clássica, de longo alcance e que são conhecidas de longa data: forças eletromagnéticas e gravitacionais. As demais só foram possíveis descritas no século passado, pois são forças microscópicas, de curto alcance e de natureza quântica: força nuclear fraca e força nuclear forte. A primeira é responsável pela desintegração da matéria e a força forte é responsável por sua estabilidade.
Embora a gravitação seja a força mais fraca entre as quatro num universo constituído de átomos neutros, as forças eletromagnéticas se cancelam e sobra o domínio absoluto da gravitação, que é uma força atrativa e universal, pois tudo o que existe está submetido a sua ação, o que, inclusive, nos impede de voar, daí a sentença anedótica caio, logo existo. Podemos então afirmar que toda nova teoria da gravitação provoca uma nova cosmologia.
Sem ter nenhuma observação de caráter global à época, Einstein elaborou um modelo de universo que lhe parecia mais simples e compatível com suas idiossincrasias: um universo formado somente de matéria ponderada. Para simplificar suas equações e obter uma solução, ele utilizou um sistema de coordenadas proposto por C. F. Gauss (1777-1855) e considerou um cenário de espaço e tempo separados, como à época anterior à relatividade especial: um tempo absoluto e um espaço tridimensional. Outra hipótese fundamental desse modelo de Einstein requer que a geometria do universo deva ser estática, isto é, ter a mesma configuração sempre, independentemente do tempo.
Einstein foi levado também a introduzir uma inesperada novidade ao aceitar que as leis do universo poderiam ser distintas das leis físicas terrestres. Em particular, fez a estranha hipótese de que no universo existiria uma forma de energia que não tinha sido jamais observada antes e que não aparece em nenhuma experiência de laboratório. Deu o nome de constante cosmológica a essa forma cósmica de energia.
Esse universo, sem uma ação solidária, isto é, sem interação entre suas diferentes partes, tinha uma propriedade avassaladora, que só mais tarde foi entendida: ele é instável.
Isso significa que o modelo cosmológico de Einstein não poderia existir por um tempo suficientemente longo para permitir o aparecimento de estruturas capazes de transformar sua homogeneidade. Não haveria tempo suficiente para formar galáxias, estrelas, planetas e, eventualmente, permitir o aparecimento de vida.
O cenário de universo sugerido por Einstein resultou ser incompatível com a observação.
Dois anos depois, Alexander Friedmann (1888-1925), um matemático russo de São Petersburgo, propôs outra solução das equações da relatividade geral possuindo uma dinâmica, na qual o volume de todo o espaço variava com o tempo cósmico e que se transformou no modelo padrão da cosmologia.
Talvez devêssemos comentar que a possibilidade de estabelecer a separação entre espaço e tempo tanto no modelo de Einstein quanto no modelo de Friedmann depende de propriedades globais do universo. Ou seja, ela nem sempre é possível.
Com efeito, em 1949 o matemático Kurt Gödel (1906-1978) exibiu um modelo cosmológico onde essa separação não é possível globalmente (embora seja possível em uma pequena região compacta do universo). Como consequência inesperada de seu cenário cósmico, Gödel mostrou que poderia haver caminhos que levavam ao passado. Dito de outro modo, embora a cada momento eu esteja caminhando para o meu futuro local, eu não estou necessariamente me afastando de meu passado. Um tal aparente paradoxo se compreende ao reconhecermos que, como outras características, a causalidade local não implica causalidade global.
Esse modelo de Gödel foi um dos primeiros exemplos formais de que nem toda lei física local pode ser extrapolada para todo o universo. Ou seja, como propõem alguns cientistas, as leis da física podem variar com o tempo cósmico, ou, para ser mais preciso, com sua localização espaço-temporal.
Essa variação das leis terrestres com o tempo cósmico se explicita de modo mais contundente ao reconhecermos a dificuldade de explicar a ausência de quantidade apreciável de antimatéria no universo. Com efeito, sabemos por experiências de laboratório que as leis da física mostram a simetria entre matéria e antimatéria nos diversos processos de interação entre partículas elementares. Isso significa que essa simetria deveria aparecer na distribuição de matéria no universo. Mas isso não acontece. E, diga-se de passagem, felizmente, pois se houvesse igual quantidade de matéria e antimatéria no universo elas coalesceriam e se aniquilariam, deixando no universo somente energia pura, somente radiação.
O físico russo Andrey Sakharov (1921-1989) propôs uma explicação bastante bem aceita para essa ausência de antimatéria. Segundo Sakharov, isso se deve a efeitos gravitacionais muito intensos que teriam ocorrido nos primórdios da atual fase de expansão do universo. Ou seja, a lei de simetria matéria-antimatéria dependeria da intensidade do campo gravitacional. Dito de outro modo, essa lei física terrestre não pode ser extrapolada para todo o espaço-tempo, para todo o universo.
Depois desse breve desvio para apresentar um panorama da cosmologia podemos retornar à nossa questão inicial da origem do universo.
A observação de que o universo esteve mais concentrado em seu passado levou à inevitável questão: quão pequeno foi seu volume?
Nas últimas décadas do século 20, surgiu a ideia de que haveria um “começo-do-universo” a partir de um ponto onde todo o volume estivesse totalmente concentrado chamada de ‘big-bang’. Naquele ponto, toda a quantidade física assumiria o inaceitável valor infinito, como a densidade de energia, a temperatura da radiação etc.
Embora a tradição da física requeira o banimento completo de toda quantidade que assume o inobservável valor infinito, os físicos aceitaram a existência de uma singularidade inicial no universo. A ideia de que teria havido uma grande explosão (big-bang) há uns poucos bilhões de anos tomou conta das diversas interpretações sobre a origem do universo. Isso significava, para os físicos que têm um horror do infinito, uma situação constrangedora, pois eles seriam obrigados a reconhecer que essa versão da origem do cosmos não admite uma explicação racional no interior da ciência.
Ou seja, a racionalidade instituída a partir de Kepler, Galileu, Tycho Brahe não poderia ser concluída, pois o universo seria impossível de ser compreendido posto que toda evolução ulterior seria decorrência daquele hipotético momento único de criação inacessível.
Felizmente, a racionalidade do cosmos voltou à tona quando ao final dos anos 1970 dois grupos de cosmólogos, do Brasil e da União Soviética, mostraram que a relatividade geral admite um bouncing, isto é, uma fase inicial colapsante, atingindo um valor mínimo para o volume total do espaço e em seguida entrando em uma fase de expansão, que é a nossa atual.
Isso nos leva à questão: o que teria colapsado? A resposta veio daqueles trabalhos e possui uma explicação comum: tratava-se ao início do vazio tanto de matéria quanto de curvatura da geometria do espaço-tempo.
Mas que vazio é esse? Não se trata do convencional vazio clássico. É uma situação mais complexa que chamaremos vazio quântico. A origem do colapso inicial do universo com bouncing está ligada à instabilidade desse vazio quântico. Isto leva a afirmar que o vazio não poderia permanecer nesse estado para sempre.
Isso responde a uma questão milenar que os filósofos fizeram lá atrás: por que existe alguma coisa e não nada? A resposta dos cosmólogos é simples: existe alguma coisa e não nada porque o vazio é instável. Entendemos assim a frase inicial desse artigo que é ‘o universo estava condenado a existir’.
A partir do exame do início do universo no infinito passado e considerando sua evolução, chega-se a uma visão de seu fim no infinito futuro semelhante ao seu começo, um estado de vazio completo, sem nenhuma forma de matéria e um espaço-tempo plano, sem curvatura. Isso conduz a imaginar sequência de universos repetindo sucessão de colapso-expansão indefinidamente.
Segue então que o cenário mais realista permite afirmar que existiria uma sucessão de fases: um período de colapso, onde o volume espacial diminui com o tempo cósmico, atingido um valor mínimo para este volume e depois iniciado uma expansão. Os cosmólogos costumam chamar cada uma dessas fases envolvendo colapso e expansão de universo.
Essa multiplicidade de configurações do universo pode ser representada como na figura anexa contendo ciclos de colapso e expansão indefinidamente.
Tal cenário foi construído a partir de uma combinação da gravitação, descrita na Relatividade Geral, e do campo eletromagnético não linear. Esse universo de múltiplos ciclos é uma das notáveis consequências dessa combinação dos dois campos clássicos conhecidos.
Algumas das propostas de universos cíclicos sugerem que fases sucessivas podem exibir características distintas, quer seja na evolução de suas perturbações, quer seja na sua composição material e até mesmo na evolução das suas leis físicas. Ou seja, as características desses universos poderiam ser diferentes de um ciclo para outro.
Com efeito, seguindo sugestão de alguns cientistas históricos (Dirac, Sambursky, Hoyle, Lattes etc.) somos levados a concluir que o universo está ainda em formação, é inacabado, eternamente inacabado, envolvido em um processo contínuo de formação, criação e destruição.
Dito de outro modo, assim como esse universo se autocriou a partir de um vazio, quando ele se autodestruir só sobrará o vazio. A partir desse vazio se construirá um novo universo.
E depois?
Não temos hoje nenhum indicio que permita afirmar que esse processo de criação e destruição tenha um fim.
1-O COSMOS HESITANTE
Existem momentos na evolução do universo que estão relacionados a regimes radicais envolvendo situações catastróficas. Sabemos, por exemplo, que no passado remoto, quando o universo estava extremamente condensado e seu volume total extremamente reduzido, fase apelidada de big bang, aconteceram diversos fenômenos associados a intensidades energéticas jamais reproduzidas na história do universo.
Um desses fenômenos, pouco conhecido, está associado ao que os matemáticos chamam de bifurcação, uma manifestação típica de certas configurações não-lineares. Esta teoria foi desenvolvida pelo matemático francês Henri Poincaré (1854-1912), que realizou importantes estudos sobre a estrutura das equações que descrevem correlações entre observadores inerciais e que possibilitou o aparecimento da síntese feita pelo físico alemão Albert Einstein em sua teoria da Relatividade Especial.
A presença de um ponto de bifurcação em um sistema de equações que descrevem um processo físico assinala a quebra do determinismo e a instalação de uma imprecisão sobre o futuro deste processo. Como o nome explicita, o fenômeno bifurcação significa que o sistema em questão pode evoluir para dois caminhos distintos, isto é, se encontra em presença de uma encruzilhada.
Embora uma visão determinista da realidade física tenha sido enfraquecida com o surgimento da descrição quântica, ela ainda permanece atrativa para alguns quando se trata de configurações clássicas, onde o papel dos processos quânticos se reduz.
A leitura da bifurcação na versão dos filósofos
No livro La nouvelle aliance, que teve grande repercussão entre estudiosos das ciências humanas, o químico Ilya Prigogine (1917-2003) e a filósofa Isabelle Stengers (1949 – ) sugerem uma estreita conexão entre as ciências da natureza e as ciências humanas. Mais do que isso, Prigogine alerta para o mal que a separação entre esses distintos modos de análise da realidade causou em ambas áreas. O ponto crucial dessa obra e que permitiu expressar a necessidade dessa união de forma contundente, se fundamentou precisamente na teoria matemática da bifurcação.
Ou seja, depois de quase quinhentos anos de descrição determinista a controlar todo processo clássico a ciência foi levada a aceitar a entrada do indeterminismo na descrição de suas leis.
No entanto, a bifurcação examinada por Prigogine se limita a processos descritos em laboratórios terrestres, o que lhe dá um caráter restrito, posto que o alcance desta indeterminação poderia ser controlável.
Para além do laboratório terrestre
E no universo? A descoberta de cenários do universo que satisfazem as equações da Relatividade Geral, possuindo bifurcação, produziu uma dificuldade de outra dimensão, na compreensão da cosmologia.
Uma análise do universo utilizando o formalismo de Poincaré foi possível somente ao final do século XX, quando o processo de bifurcação foi descoberto formalmente em processos globais na cosmologia no chamado Universo Viscoso. Abriu-se então um novo território de libertação do pensamento sobre o mundo. Não se tratava mais da explicitação do indeterminismo envolvendo processos limitados, da dimensão humana, como apresentado por Prigogine e Stengers, mas sim do sistema de equações que descreve a dinâmica da geometria do universo, segundo a teoria da relatividade geral. Curiosamente, os filósofos, desatentos, não se interessaram em ouvir os cosmólogos e se informar sobre esse abandono do determinismo em nível cósmico.
Universo hesitante
Podemos afirmar que a presença de um ponto de bifurcação em um sistema de equações que descrevem um processo físico assinala a quebra do determinismo e a instalação de uma imprecisão sobre o futuro deste processo. Enquanto essa bifurcação se limitava a processos em laboratórios terrestres como descritos por Prigogine, o alcance dessa indeterminação parecia ser controlável, isto é, parecia se limitar a configurações especiais que não influenciariam além do limitado território da experiência de laboratório. No entanto, a descoberta em 1984 de cenários do universo com bifurcação satisfazendo as equações da teoria da relatividade geral produziu uma enorme dificuldade na compreensão desses processos.
Esses comentários sugerem que o universo parece se organizar de tal modo a requerer de tempos em tempos uma liberdade que o rígido determinismo das leis físicas pretende restringir.
Isso, claro está, não impossibilita a elaboração de uma descrição racional completa do cosmos, mas provoca a necessidade de colocar a história no centro de toda análise cósmica em conformidade com o conhecimento científico atual que levou à certeza do caráter dinâmico da expansão do universo, implicando em alteração de suas propriedades globais com o passar do tempo cósmico.
Do que vimos comentando, podemos inferir que o universo, sua dinâmica e a possibilidade de realizarmos uma descrição racional das propriedades globais do espaço-tempo não estão determinados a priori, mas exigem um acompanhamento de sua evolução e conhecimento das alternativas que lhe são oferecidas aleatoriamente. Ou seja, assim como a história é essencial para a compreensão da sociedade humana, a verdadeira descrição do universo é histórica.
Referências
Novello: Do big bang ao universo eterno. Ed. Jorge Zahar (2010) Rio de Janeiro.
Novello: Manifesto Cósmico in O Universo inacabado. Ed. N – 1 (2018) São Paulo.
Novello e Ligia M. C. S. Rodrigues: Bifurcation in the early cosmos in Marcel Grossmann Meeting (Shanghai, República Popular da China). Veja também Lettere al Nuovo Cimento vol 40, n10 (1984).
Hartmann, A. e Novello, M.: A new bifurcation in the universe in Unravelling Complexity. The life and work of Gregory Chaitin, World Scientific (2020) and arXiv- grqc/1904 07730.
Novello, Aline N. Araújo et J. M. Salim : Cyclic Magnetic Universe, International Journal of Modern Physics A, 24, 5639 (2009)