No fundo da última gaveta da cômoda – Ensaio Palavra-Imagem com Sofia Boito

Cassiana Der Haroutiounian

Este Ensaio Palavra-Imagem veio diferente. Foi pensado, discutido e elaborado com Sofia Boito ao longo de duas semanas. Mais do que imagens que servissem como inspiração para as palavras de Boito, o Ensaio pedia o oposto disso. Não cabia dar rostos ou figurar a palavra, mas deixar no vestígio, nos rastros, no que foi, no que poderia ter sido e no que será. O nome do seu primeiro livro, “No fundo da última gaveta da cômoda”, lançado este ano pela editora Patuá, disparou o pensar-imagem: uma mistura de memórias da família de Boito com álbuns antigos dos meus avós. Sofia Boito é uma artista-pesquisadora, interessada em linguagens de fronteira entre artes cênicas, literatura e artes visuais. Doutora e Mestre em Artes Cênicas pela ECA-USP, realizou um ano de pesquisa de doutorado na Sorbonne Nouvelle. Interessada em obras site-specific, em questões de gênero e no trabalho a partir de seu próprio corpo, tenta estabelecer uma investigação teórico-prática encarnada. Atualmente, é professora temporária no departamento de Artes Cênicas da ECA-USP (2019-2021). O resultado deste Ensaio é de um tempo. Tempo este que você escolhe qual é.

Fotografias em 10X15

Ela na cama,

e, então, fechando os olhos, está numa noite de dezembro, sentindo aquele cheiro úmido do jardim inundado de luzes de natal. Mas é julho e daqui alguns dias fará aniversário.  As meias aqueciam demais os pés fora de época, os cobertores se embolavam entre as coxas… puxava os tecidos, descobria os membros e passava frio. Levantava. O banheiro parecia lhe chamar a cada minuto. E pensa – de porta aberta enquanto escuto o xixi batendo no vaso – que se pudesse escolher estaria na semana do natal, voaria seis meses à frente, em direção ao futuro, ou voltaria seis meses atrás, em direção a si mesma. Na mente desfilavam assuntos – nenhum de ordem onírica, todos tão ásperos e duros como grandes móveis que não podiam passar pela porta -. Os pensamentos encalhavam e ficavam, assim, no meio do caminho,  não deixando ela sair nem se desvencilhar. Se pudesse escolher algum mês: dezembro; se fosse para escolher algum dia: segunda; se desse para ser alguma outra hora: meio-dia. Mas, ao invés disso, era sábado em uma madrugada quente de inverno. Uma madrugada que, quanto mais adentrava a escuridão, mais se tornava estupidamente insone e dolorosa. Voltava a cabeça para uma posição desconhecida. Imaginava sonhos possíveis. Tentava em vão se convencer de que o mundo onírico poderia lhe salvar – apesar de ter passado a noite anterior imersa nos piores pesadelos. Lembrava que em algum momento da vida já pudera escolher quem encontrar nas horas adormecidas. Fechava os olhos e decidia para onde e com quem ir. Mas naquela altura as costas doíam e lhe parecia que a hora de adormecer já tinha passado, como se houvesse, afinal, uma hora que não poderia ser escolhida, mas apenas colhida como um fruto que está, naquele exato instante, no ponto.

Ela tomando um vinho no sofá,

como se estivesse sozinha. E estamos. Todos. É acordar e perceber isso, que ela já sabe, a cada sete dias. A segunda-feira consegue ser um alívio, a rotina, dela, só dela, pode ser um respiro. Um dia ela escreveu algo assim: “Hoje me injetei mais uma vez de domingo e domingo é morrer um pouco.” Domingo é estar em um lugar que lhe colocaram, não é o dia em si, é a descoberta de uma natureza dela, é se perceber aqui dentro, de si, sozinha, um lugar em que me colocaram e no qual só eu posso estar. É um fim trágico, domingo, de um herói que se encontra no final, sem saída. É a culminação de tudo, é um pequeno fim de mundo, mini-apocalipse… “Um dia eu vou acabar em um domingo.” É falar do mundo e de tudo consigo mesma, sem ter fim. E nesse falar perceber, sempre, que o mundo é essa coisa horrível que está aí fora – A vida essa coisa linda e triste que está aqui dentro. Percebe? Que a dor permeia tudo, e não pode haver fim? Até que haja realmente? Ela costuma sonhar sempre que está prestes a morrer. São sonhos ruins, mas ela nunca acaba  realmente morrendo. Seu corpo, a ponto de sucumbir, acorda. É como se ela estivesse se preparando, e não dói, é uma sensação pura, de redenção. É finalmente a dor se esvaindo… Ela não pode acabar com os domingos, porque ela precisa deles. Ela precisa ainda sentir-se viva. Já tentou disfarçá-los de sábado, mas o domingo retorna fantasiado de qualquer outro dia. Como um herói trágico. O domingo. Um dia. Vai ser seu fim. E tudo bem, porque enquanto não é assim sente que a dor que toma seu sangue é uma dor simples. Uma dor que não machuca mais que o necessário. É como o fim de uma longa viagem, é olhar para as fotos que estão em uma gaveta e precisam ser olhadas… Com toda a saudade e alegria que isso possa causar. Essas duas últimas semanas tiveram muitos domingos. E isso acontece, às vezes. É quando todos os dias se rebelam e resolvem descansar, domingo é o sétimo dia, dizem que nele Deus descansou. E tudo parou, e tudo se doeu enormemente. Há de ter sido a primeira dor da história…

Instantâneo fotográfico

A Praia de Copacabana

Uma mulher cava um buraco na areia. O céu brilha de estrelas cristalinas. O passado não existe. Janis Joplin toca na vitrola do primeiro andar em um labirinto de fumaça. A mulher faz uma ligação. Um homem a encontra na esquina. O ar está frio para dezembro. Eles rumam em direção ao nada. O mar bate nas pedras. Grandes aracnídeos. Pequeno quarto com vista para a praia. A prostituta passa acompanhada. Os alemães só vêm para o Brasil para fazer turismo sexual. A passagem do tempo é mais cruel para as mulheres. Passa batom na boca, passa. E não come chocolate, não há metafísica nenhuma em barras de cacau. O homem no farol vende a um real. Fura o vermelho. E se lança no asfalto.

FOTOS 3X4

 

querer ser vento

querer soprar do fundo

do pulmão da terra

sair voando, sem tempo

 

invadir os espaços

carregar o mundo em redemoinho

derrubar as placas

as sinalizações

 

rasgar os peitos e deixá-los nus

corações expostos

ser o precipício

a queda livre

 

o segundo que antecede o choque

as nuvens

o vapor

o último suspiro

 

invisível e profundo

inaudível  e triste

imperceptível e selvagem

para que os homens tentem me inventar e não consigam

UM CARTÃO-POSTAL

Vista do Rio Sena, Quai d’Orléans, Île Saint-Louis, Paris.

 Estou sentada à beira do rio, bebendo um gole d’água, sob a sombra de uma  árvore, descansando as pernas pesadas. Hoje: dia desses em se que acorda no meio da noite com a sensação interna de que vai desaparecer pelos orifícios do corpo, em que sente a cabeça latejando por conta do calor impiedoso, um dia comum e quente, as pessoas passando à minha volta, aproveitando o feriado, tomando sorvete, refrescando-se com água gelada… É num dia como esse que se pensa… Nada pode ser tão terrível assim. O corpo sente a opressão do sol, mas tudo passará quando a noite cair – lá pelas 21:30h – quando o céu de um azul celeste se tornará azul marinho, para depois se tornar negro… A ordem da vida segue. É o que ela sente, tomando um gole d’água que desce pela garganta gelando momentaneamente os dentes e depois o cérebro. As escolhas que fazemos – impreterivelmente – são muitas, porém pequenas. São poucas as escolhas que farão realmente diferença. Que verbo usar? Utilizar este ou aquele pronome? A literatura não é na realidade tanto. Nem tão pouco. Apenas é. Um conjunto de palavras colocadas umas depois das outras, que formarão frases, parágrafos, páginas… E que mais alguém chamará – ou não – de literatura. O processo contínuo de existência. De escrita. De leitura. Do outro. De textos não escritos e que ainda estão por vir. Ao meu lado uma gaivota olha para o nada – em uma surpreendente atitude de contemplação. Mas ela não contempla. Ela sente o ar parado, antigo, nostálgico e ao mesmo tempo tão vivo desta cidade luz. Os homens, mulheres, crianças, um dia se tornarão velhos, velhas, adultos e se lembrarão – cada um deles – de uma forma diversa deste dia. Ninguém está à altura de ninguém. Ninguém está à altura da gaivota que contempla. Nas profundezas deste rio urbano, controlado, que perdeu aparentemente seu estado selvagem, uma correnteza fria consola a atmosfera quente. Uma brisa que sopra dos pulmões do mundo e que não se sabe. O silêncio do calor ecoa. Ninguém tem coragem ou energia de soltar um GRITO num dia desses. Nem mesmo ela, no momento em que acordou de madrugada com a nítida sensação de que estava desvanecendo. Ela não esgotará as possibilidades… Não cantará às gaivotas, não criará alegorias… Ela não contemplará as nuvens – que não estão ali. Ela não se jogará no vazio. Não conhecerá uma cartomante. Não lerá seu futuro em uma palma de mão. Ela não descobrirá o mistério da vida em um letreiro. Não mudará o rumo da humanidade. Ela não conhecerá o dia de sua morte. Nem se reconhecerá no silêncio. Ela não fará cálculos inimagináveis. Não inventará movimentos, não escreverá manifestos… Ela é muda, cega e surda; mas ao mesmo tempo é completamente saudável. Ela não caminhará de olhos fechados. Não pegará nas mãos de um estranho. Não aprenderá o significado de nenhuma palavra. Ela não se lançará da ponte e tampouco cravará no muro um coração com uma seta. Não arrancará pedaços do pavimento, nunca construirá barricadas. Não fará a revolução, não atravessará a avenida em chamas. Não desaparecerá sem deixar rastros. Ela não se afundará no solo. Nem deixará marcas. Ela não inventará versos. Não comunicará o som de sua verdade. Não conseguirá alcançar o topo. Não cravará nenhuma bandeira. Não se perderá para sempre em ruas avenidas calçadas ou continentes…Não desenhará um mapa-múndi. Não saberá a medida de seus erros e tampouco conhecerá a dimensão de seus acertos. Pois sou apenas isto que vemos sentada à beira do rio. Parte da paisagem, como todos. Eu aumentarei os teus batimentos cardíacos. Suarei por todos os poros. Desmaiarei enquanto durmo e morrerei num dia desses em que o calor nos aproxima e nos afasta.

E todos nós sucumbiremos às forças do clima para acabar nos abraçando em pensamento…