Mais vale adiar o dia – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Martins Marques e Felix Gonzalez-Torres

“Untitled” (Perfect Lovers), 1991
Cassiana Der Haroutiounian

Combinar as palavras sempre tão bonitas da poeta Ana Martins Marques com as obras do cubano-americano Felix Gonzalez-Torres (1957-1996) neste Ensaio Palavra-Imagem de hoje me faz sentir aquela alegria profunda. Ana, autora de “Da arte das armadilhas” (Prêmio Biblioteca Nacional em 2012) e “O livro das semelhanças” (2015) lançará em junho pela Companhia das Letras (já em pré-venda) seu mais novo livro “Risque esta palavra”. Eu já sabia que estava para sair suas palavras novas e precisas, mas depois de ler um trecho no Jornal Literário Pernambuco em uma dessas noites frias, só conseguia pensar nas imagens de Felix. Pareciam feitas umas para a outras, como se fossem um prolongamento natural. Quando dei a ideia, Ana me disse que adorava o trabalho dele e tive a sensação de que o diálogo entre esses dois artistas seria lindo. Conhecido por suas instalações, boa parte da obra de Felix González-Torres é baseada na sua experiência diante da pandemia de Aids. Ele perdeu seu companheiro para a doença e, algum tempo depois, ele mesmo foi vítima do vírus HIV nos anos 1990. Suas obras trazem o rastro, o tempo, a memória e a saudade e, junto com Ana Martins Marques, provocam um daqueles ensaios que fazem a gente suspirar, refletir e sentir.

 Alba

 

É dia

e daí?

Relógios e amantes

acordam em desacordo.

Por que levantar agora?

A noite não foi cheia de afazeres,

como um dia de escritório?

Não é também labor

uma noite de amor?

Como o corpo desses livros

que lemos no leito

o seu não guardou as marcas

do meu manuseio lento?

Mais vale adiar o dia.

O alarme do celular:

que triste cotovia.

O que eu mais gosto do teu corpo

 

 A parte do teu corpo

que procura pelo sol

como os gatos pela casa

 

a parte que permanece imóvel

quando cantas, a que se move

quando estás parado

 

a parte que apenas a mim

e de relance, por descuido

revelaste

 

a parte onde guardas as memórias

de infância, a parte que ainda anseia

pelo futuro

 

a parte que demora

a acordar

depois que acordaste

 

a parte que discorda

ainda de mim

quando já cedeste

 

aquela que adere

mais fortemente

ao teu nome

 

a parte que guarda

silêncio enquanto

falas

 

a parte que

quando estás cansado

ainda não se cansou

 

a parte ainda noturna

quando é dia, diurna

quando é noite

 

a parte que

tem parte

com o mar

Aquele quarto de hotel

 

O tempo concentra-se no encontro

como a doçura no figo

confundem-se teu nome e o nome do mar

estrangeiro

teu corpo e a laranjeira acesa

no pátio do hotel

e ainda todas as pequenas coisas

que não aconteceram

a partir deste encontro

para nenhum futuro

“Untitled” (Double Portrait), 1991

Porque sua camiseta secou ao sol ela tem a cor do sol

porque seus cabelos secaram ao vento seus pensamentos têm

a velocidade do vento

 

porque você disse noite sua boca

tem o gosto do mar noturno

 

porque você não conheceu meu avô você me amará menos

porque não te conheci quando criança eu te amarei mais

 

porque você conheceu meus livros antes de me conhecer

você nunca vai me conhecer

Untitled (The End), 1990