Mais vale adiar o dia – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Martins Marques e Felix Gonzalez-Torres
Combinar as palavras sempre tão bonitas da poeta Ana Martins Marques com as obras do cubano-americano Felix Gonzalez-Torres (1957-1996) neste Ensaio Palavra-Imagem de hoje me faz sentir aquela alegria profunda. Ana, autora de “Da arte das armadilhas” (Prêmio Biblioteca Nacional em 2012) e “O livro das semelhanças” (2015) lançará em junho pela Companhia das Letras (já em pré-venda) seu mais novo livro “Risque esta palavra”. Eu já sabia que estava para sair suas palavras novas e precisas, mas depois de ler um trecho no Jornal Literário Pernambuco em uma dessas noites frias, só conseguia pensar nas imagens de Felix. Pareciam feitas umas para a outras, como se fossem um prolongamento natural. Quando dei a ideia, Ana me disse que adorava o trabalho dele e tive a sensação de que o diálogo entre esses dois artistas seria lindo. Conhecido por suas instalações, boa parte da obra de Felix González-Torres é baseada na sua experiência diante da pandemia de Aids. Ele perdeu seu companheiro para a doença e, algum tempo depois, ele mesmo foi vítima do vírus HIV nos anos 1990. Suas obras trazem o rastro, o tempo, a memória e a saudade e, junto com Ana Martins Marques, provocam um daqueles ensaios que fazem a gente suspirar, refletir e sentir.
É dia
e daí?
Relógios e amantes
acordam em desacordo.
Por que levantar agora?
A noite não foi cheia de afazeres,
como um dia de escritório?
Não é também labor
uma noite de amor?
Como o corpo desses livros
que lemos no leito
o seu não guardou as marcas
do meu manuseio lento?
Mais vale adiar o dia.
O alarme do celular:
que triste cotovia.
O que eu mais gosto do teu corpo
A parte do teu corpo
que procura pelo sol
como os gatos pela casa
a parte que permanece imóvel
quando cantas, a que se move
quando estás parado
a parte que apenas a mim
e de relance, por descuido
revelaste
a parte onde guardas as memórias
de infância, a parte que ainda anseia
pelo futuro
a parte que demora
a acordar
depois que acordaste
a parte que discorda
ainda de mim
quando já cedeste
aquela que adere
mais fortemente
ao teu nome
a parte que guarda
silêncio enquanto
falas
a parte que
quando estás cansado
ainda não se cansou
a parte ainda noturna
quando é dia, diurna
quando é noite
a parte que
tem parte
com o mar
Aquele quarto de hotel
O tempo concentra-se no encontro
como a doçura no figo
confundem-se teu nome e o nome do mar
estrangeiro
teu corpo e a laranjeira acesa
no pátio do hotel
e ainda todas as pequenas coisas
que não aconteceram
a partir deste encontro
para nenhum futuro
Porque sua camiseta secou ao sol ela tem a cor do sol
porque seus cabelos secaram ao vento seus pensamentos têm
a velocidade do vento
porque você disse noite sua boca
tem o gosto do mar noturno
porque você não conheceu meu avô você me amará menos
porque não te conheci quando criança eu te amarei mais
porque você conheceu meus livros antes de me conhecer
você nunca vai me conhecer