Trata-se de uma jornada que não se interrompe – Ensaio Palavra-Imagem com Ícaro Lira e Gabriel Bogossian
Este Ensaio Palavra-Imagem chegou como aqueles acasos bonitos da vida. Na segunda-feira vi que o artista cearense Ícaro Lira (1986) estava com seu novo livro “Lições da Pedra”saindo do forno e na hora meu coração bateu forte. Eu tinha acabado de voltar do Ceará e sou completamente obcecada por pedras. Precisava ter aquele livro em mãos. Mandei uma mensagem e em meia hora o livro estava na minha casa. Em mais uma hora, pensamos no Ensaio deste domingo. Convidamos o curador e editor independente Gabriel Bogossian (1983) – descendente de armênios como eu – para mergulhar em palavras nas pedras de Lira. Em sua produção, Lira se debruça sobre algumas implicações contemporâneas de eventos da história brasileira, aproximando práticas arquivísticas, arqueológicas e ficcionais. Ele fez exposições individuais no Paço das Artes e na Galeria Jaqueline Martins, além de coletivas no Palais de Tokyo em Paris e no Instituto Tomie Ohtake. Bogossian foi curador adjunto da Associação Cultural Videobrasil (São Paulo, 2016-2020), curador convidado da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil |Comunidades imaginadas (São Paulo) e da Screen City Biennial (Stavanger). O encontro entre os dois já tinha acontecido em 2018 e hoje transborda em um texto exclusivo para o blog, permeado por um fluxo poético e pelo porvir e devir. E eu estou feliz da vida com essa torrente de acasos…
As pedras
As imagens se encadeiam sem nenhum esforço. Como frames de um filme disperso, cujas sequências se abrem e se expandem no espaço, a documentação fotográfica das exposições de Ícaro Lira reunida no livro Lições da Pedraaponta para uma espécie de magia simpática aplicada indistintamente sobre manzuás, livros e cartões postais. Sob ela, os elementos de uma obra em processo tornam-se uma mesma matéria imagética, itens recolhidos por um arquivista impossível que tivesse, em uma só vida, reunido os despojos de Langsdorff e Euclides, Alexandre Rodrigues Ferreira, Rondon e os irmãos Villas-Bôas, testemunhando, a partir deles, a conquista de um território e de suas populações, nisso que hoje é o nosso país.
As imagens são parte de um mesmo fluxo, um mesmo tempo que atravessa séculos, ciclos econômicos, governos. Trata-se de uma jornada que não se interrompe, progredindo através da história rumo talvez à destruição, quem sabe à morte. Ao arquivista tampouco é dado parar, operando ora como objetiva, ora como coletor: por todo lado existem planos, indícios, recolhe-se uma informação relevante. Se um pensamento cinematográfico preside a tudo, é porque só uma imaginação forjada pelo cinema permitiria um encadeamento tão surpreendente de eventos e cenas, emendando bitolas e formatos, transpondo faixas de áudio de um personagem a outro, identificando cacoetes que se repetem aqui e ali, ainda que separados por décadas.
As imagens reaparecem em diferentes trajetos, assim como certas cenas se repetem em diferentes cidades, num rizoma de imagens-sintoma que liga passado e futuro. Trata-se de uma sequência bastante ampla, repleta de fantasmas, eles também insistentes, recorrentes. O Pacificador, sob cujo cavalo seguem oprimidos os miseráveis, não interrompe seu chamado à guerra, enquanto nos templos e nos covis falsos profetas repetem seus cantos de espoliação e riqueza e tiros perturbam outra vez a superfície das águas.
As imagens avançam desimpedidas, acompanhando o progresso que segue ora como um tropel de marcha, ora como tratores. Dão testemunho de uma fome impossível, quiçá insaciável, mas os testemunhos e os sinais se acumulam, mudos, sob os escombros, e pouco nos resta além de observar sua repetição nauseante e a fumaça. Fumaça, não névoa: a supressão do horizonte é um gesto estudado, um projeto, desejo de morte ou insídia, ele mesmo insistente. Diante dela, como de toda a destruição, restam as pedras, luminosos indícios de que um dia houve gente, rostos, um povo na beira do rio. As pedras – as pedras, como os fotogramas, chamuscadas pelo futuro, murmuram sua lição; não de quietismo, mas de ação: rumo ao porvir.