Ontem, Hoje, Amanhã – As potências fabulosas de José Damasceno no tempo e no espaço

— A quem mais amas tu, homem enigmático, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?

— Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.

— Teus amigos?

— Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.

— Tua pátria?

— Ignoro em qual latitude ela esteja situada.

— A beleza?

— Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.

— O ouro?

— Eu o detesto como vocês detestam Deus.

— Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?

— Eu amo as nuvens… as nuvens que passam lá longe…

as maravilhosas nuvens!

Charles Baudelaire

Condensador Cromático, 2021 (Foto: Filipe Berndt)

Quando me preparei para o papo com o artista José Damasceno, eu tinha em mente alguns pontos formais de sua obra, conceitos já trabalhados e conhecidos por todos que a admiram. Como sempre, criei um mapa para nossa conversa com palavras e conceitos soltos. No primeiro instante, fomos atravessados por potências fabulosas de uma fala complementar a outra e, mais do que uma entrevista, devaneamos e trocamos os afetos e as linhas de fuga que compreendem a arte e os dias que habitamos.

Um dos maiores nomes da arte brasileira, desde o início dos anos 1990, Damasceno teve sua obra exposta em importantes instituições como o Museu de Arte Contemporânea de Chicago, o Reina Sofia em Madrid e o Museu de Arte Moderna em São Paulo, bem como nas Bienais de Veneza, Sydney e São Paulo.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

 

 Comecei com uma frase da Suely Ronik que diz: “Cartografar, portanto, não é criar mapas, desenhar o visível, e sim acompanhar a latitude e a longitude das intensidades dos afetos, marcar e remarcar a multiplicidade rizomática dos movimentos.” E ele logo me trouxe um poema do Baudelaire e me contou sobre sua exposição no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia em  Madrid que se chamava “coordenadas e aparições”, em 2008.

“Nove coisas aconteciam no museu todo e me perguntei: qual era o sentido mais essencial da ideia de espaço, que possa defini-lo? Seria a existência de duas coordenadas diferentes. O espectador percorria o museu e ia identificando uma trajetória, entendendo uma certa topografia, um espaço que precisava ser percorrido. Depois me dei conta que isso é o que faço. Na pinacoteca – a exposição ‘Moto-contínuo’ fica em cartaz até 30 de agosto, com curadoria de José Augusto Ribeiro – você tem um intervalo de tempo considerável e ao longo desse processo foram também estabelecidas coordenadas que são as obras e isso vai criando espaço. Ele vai sendo descoberto a medida que vai sendo inventado.”

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

Um projeto como esses é uma oportunidade de repensar lugares, percursos e posições, bem como a localização da arte e a sua relação com o espectador. Damasceno é mais um explorador e sua missão é iluminar e descobrir esses entre espaços, com o desafio intermitente da compreensão do mesmo: suas qualidades, propriedade e mistérios. Uma microfísica do imaginário.

Para ele, o tempo é um dos mistérios insondáveis e nós somos o tempo. E a obra de arte possui um tempo próprio, particular que não está subjugado a uma questão cronológica e usual. Carrega todo um legado poético, latente e vivo. Cada contato com uma obra é único, se difere entre o próprio tempo do espectador, o espaço que habita e o que carrega em si de afeto. “Literalmente a mostra na Pinacoteca é uma retrospectiva, reunindo diferentes tempos meus e das obras, com suas particularidades e circunstâncias. Existe uma questão de vizinhanças que é surpreendente”, comenta ele.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

“Você tá me dando onda, Cassiana. Já estou querendo responder tudo”.

Em sua obra “Organograma” com as palavras ontem, hoje e amanhã, ele sugere que cada um experimente esse organograma na exposição. Parece que a gente vai criando uma espécie de tecido, uma topografia onde as coisas vão acontecendo num fluxo contínuo, orgânico e misterioso. “Uma coisa que me acompanha e é muito presente na minha vida são meus livros e os tempos que nele existem. Uma biblioteca é um lugar espiritual por excelência e você escolhe ter uma relação com todas aquelas circunstâncias e tempos diante de sua atenção. Eu levo em consideração o legado poético, a fim de experimentá-lo, compreendê-lo e vive-lo.”

“Por exemplo, nós agora estamos conversando. E temos vários encontros e conversas ao longo da vida e cada uma tem seu tempo e seu lugar próprio. Aquele lugar que ela ocupou existe para sempre. Tenho experimentado isso ao longo da vida, em me dar conta disso…”

Monitor Líquido, 2021
(Foto: Filipe Berndt)

José me conta que o enigmático é uma condição incontornável e que vivemos em um mundo que não compreendemos e isso faz parte do ímpeto que nos faz mover cada coisa, despertados pela curiosidade, atenção, com a mente sob o signo da interrogação, como dizia José Ortega y Gasset. Ao mesmo tempo que nos entregamos aos acasos, aos encontros e aos fluxos misteriosos e indomáveis. É essa a presença que ele considera imediata de um mistério movente. “E quando você me pergunta da essência da matéria existem várias formas de pensar isso. Em relação a arte, é um elemento essencial quando aquilo que é inorgânico ganha vida e também você pode pensar uma espécie de um novo tipo de densidade. Uma densidade que compreende a ideia também. Pensar onde o objeto e ideia se confundem. Isso eu creio que traz um sentido da graça e traz vida”.

Na obra “cinema elástico”, composto por pregos e elástico, por exemplo, uma série de hipóteses se apresentam e o espectador não sabe bem o que acontece a sua frente. São micro tensões que tem um sentido de uma espécie de coisa pré-formal, estrutural,  anterior a uma narrativa, de forma bastante elementar. É uma obra que acontece no entre. “Esse ‘entre’ me interessa muito, esse lugar de passagem, de correspondência me interessa bastante. Entre o mundo material e o espiritual. Existe sempre essa tentativa de compreensão que traz uma espécie de  comunicação de um lugar ao outro”.

Solilóquio, 2001 – Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021 (Foto: Jamerson Lima)

Ele tem um interesse especial nesse espaço poético de trânsito entre nós, da imaginação. O background de arquitetura o acompanha mesmo que de forma silenciosa. Exercícios para que algo aconteça nesse espaço entre nós. Pensar que esse lugar real pode ser. O espaço como uma forma de experimentar e celebrar a arte.

Existe sempre o acaso num espaço expositivo, segundo ele. Reflete que o mundo é imenso ao nosso redor, inclusive em nossos corpos e não temos consciência absoluta disso. O inconsciente existe e o acaso idem. Portanto, é algo que precisamos considerar em nossas vidas, em nossas ações e processos, permitindo as questões todas que surgirem e ir dançando conforme as situações que se apresentam. “As vezes em determinado projeto tem uma execução extremamente fiel ao que foi planejado e tem vezes que há imposições onde não há escolha”.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

Para ele, é importante reconhecer, considerar e valorizar a relação entre acaso e método, chance e arbítrio para perceber e buscar as soluções. A escultura, por exemplo, funde espírito e matéria, objeto e ideia, transformação do inorgânico em algo vivo, a substância em espírito. “Ser livre é ser responsável”, citou ele com essa frase de Maria Zambrano.

“Nós, nesse início do século XXI, sabemos que devemos nos tornar mais lúcidos, mais espirituais e mais responsáveis do que nunca e nós sabemos, ao mesmo tempo, que nunca a humanidade esteve tão cega, embrutecida e irresponsável. Nós o sabemos porque constatamos que quase toda a vida social é controlada por um populismo industrial que destrói a consciência individual e coletiva”. Bernard Stiegler

“A crise global neoliberal deflagra em escala exponencial desamparo e precariedade. A pandemia esgarça, precariza e desestrutura os laços e as relações sociais. Vivemos uma tragédia político-sanitária, uma tragédia simultânea, um desafio mortal literalmente, penso sempre diante de circunstâncias tão hostis e ameaçadoras em grande escala numa alternativa viável em termos de uma micropolítica e deliberadamente trabalhar para melhorar meu entorno, cuidar daquilo que esteja a meu alcance em relação aos demais e ao meu habitat psíquico e também espacial onde prevaleçam respeito, consideração e afeto e assim fortalecer o sentido de solidariedade. Está tudo em aberto e devemos repensar o sentido de união e procurar produzir esclarecimento e discernimento”.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

É preciso prezar o respeito, a consideração e o afeto, ligando um ponto a outro pelo amor. Como numa teia que vai ganhando corpo à medida em que se conecta em um fluxo contínuo de encontros, trocas, silêncios, essências, acasos e precisão. Muita precisão para nos entrelaçarmos nesse embaralhado estético, dissonante e que se deixa ser afetado pelo outro e pelo espaço pulsante.

20.04.2017 – RE:PUBLICA – Intervenção do artista plástico José Damasceno nas ruas das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Av. Presidente Vargas, Centro, Rio de Janeiro. (Foto: PAULO BARRETO)

“O amor nos liga às coisas. Trata-se de uma real conexão, uma ampliação da individualidade que se relaciona e absorve essas outras coisas amadas. Aquilo que amamos se torna imprescindível e que não podemos viver sem sua presença e logo as propriedades do que amamos se tornam assim também para nós e então o amor vai ligando uma coisa a outra em uma estrutura essencial”. José Ortega y Gasset.

“Tenho orgulho do que você está me trazendo. Dá uma esperança para a gente… você está apostando naquilo que te move: afeto e respeito. Gostei de a gente ter trocado”. Disse-me ele, terminando nossa conversa.

Obrigada Damasceno, por esta conversa tão potente. <3

Carimbo, 2021