Ontem, Hoje, Amanhã – As potências fabulosas de José Damasceno no tempo e no espaço
— A quem mais amas tu, homem enigmático, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?
— Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
— Teus amigos?
— Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.
— Tua pátria?
— Ignoro em qual latitude ela esteja situada.
— A beleza?
— Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.
— O ouro?
— Eu o detesto como vocês detestam Deus.
— Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?
— Eu amo as nuvens… as nuvens que passam lá longe…
as maravilhosas nuvens!
Charles Baudelaire
Quando me preparei para o papo com o artista José Damasceno, eu tinha em mente alguns pontos formais de sua obra, conceitos já trabalhados e conhecidos por todos que a admiram. Como sempre, criei um mapa para nossa conversa com palavras e conceitos soltos. No primeiro instante, fomos atravessados por potências fabulosas de uma fala complementar a outra e, mais do que uma entrevista, devaneamos e trocamos os afetos e as linhas de fuga que compreendem a arte e os dias que habitamos.
Um dos maiores nomes da arte brasileira, desde o início dos anos 1990, Damasceno teve sua obra exposta em importantes instituições como o Museu de Arte Contemporânea de Chicago, o Reina Sofia em Madrid e o Museu de Arte Moderna em São Paulo, bem como nas Bienais de Veneza, Sydney e São Paulo.
Comecei com uma frase da Suely Ronik que diz: “Cartografar, portanto, não é criar mapas, desenhar o visível, e sim acompanhar a latitude e a longitude das intensidades dos afetos, marcar e remarcar a multiplicidade rizomática dos movimentos.” E ele logo me trouxe um poema do Baudelaire e me contou sobre sua exposição no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia em Madrid que se chamava “coordenadas e aparições”, em 2008.
“Nove coisas aconteciam no museu todo e me perguntei: qual era o sentido mais essencial da ideia de espaço, que possa defini-lo? Seria a existência de duas coordenadas diferentes. O espectador percorria o museu e ia identificando uma trajetória, entendendo uma certa topografia, um espaço que precisava ser percorrido. Depois me dei conta que isso é o que faço. Na pinacoteca – a exposição ‘Moto-contínuo’ fica em cartaz até 30 de agosto, com curadoria de José Augusto Ribeiro – você tem um intervalo de tempo considerável e ao longo desse processo foram também estabelecidas coordenadas que são as obras e isso vai criando espaço. Ele vai sendo descoberto a medida que vai sendo inventado.”
Um projeto como esses é uma oportunidade de repensar lugares, percursos e posições, bem como a localização da arte e a sua relação com o espectador. Damasceno é mais um explorador e sua missão é iluminar e descobrir esses entre espaços, com o desafio intermitente da compreensão do mesmo: suas qualidades, propriedade e mistérios. Uma microfísica do imaginário.
Para ele, o tempo é um dos mistérios insondáveis e nós somos o tempo. E a obra de arte possui um tempo próprio, particular que não está subjugado a uma questão cronológica e usual. Carrega todo um legado poético, latente e vivo. Cada contato com uma obra é único, se difere entre o próprio tempo do espectador, o espaço que habita e o que carrega em si de afeto. “Literalmente a mostra na Pinacoteca é uma retrospectiva, reunindo diferentes tempos meus e das obras, com suas particularidades e circunstâncias. Existe uma questão de vizinhanças que é surpreendente”, comenta ele.
“Você tá me dando onda, Cassiana. Já estou querendo responder tudo”.
Em sua obra “Organograma” com as palavras ontem, hoje e amanhã, ele sugere que cada um experimente esse organograma na exposição. Parece que a gente vai criando uma espécie de tecido, uma topografia onde as coisas vão acontecendo num fluxo contínuo, orgânico e misterioso. “Uma coisa que me acompanha e é muito presente na minha vida são meus livros e os tempos que nele existem. Uma biblioteca é um lugar espiritual por excelência e você escolhe ter uma relação com todas aquelas circunstâncias e tempos diante de sua atenção. Eu levo em consideração o legado poético, a fim de experimentá-lo, compreendê-lo e vive-lo.”
“Por exemplo, nós agora estamos conversando. E temos vários encontros e conversas ao longo da vida e cada uma tem seu tempo e seu lugar próprio. Aquele lugar que ela ocupou existe para sempre. Tenho experimentado isso ao longo da vida, em me dar conta disso…”
José me conta que o enigmático é uma condição incontornável e que vivemos em um mundo que não compreendemos e isso faz parte do ímpeto que nos faz mover cada coisa, despertados pela curiosidade, atenção, com a mente sob o signo da interrogação, como dizia José Ortega y Gasset. Ao mesmo tempo que nos entregamos aos acasos, aos encontros e aos fluxos misteriosos e indomáveis. É essa a presença que ele considera imediata de um mistério movente. “E quando você me pergunta da essência da matéria existem várias formas de pensar isso. Em relação a arte, é um elemento essencial quando aquilo que é inorgânico ganha vida e também você pode pensar uma espécie de um novo tipo de densidade. Uma densidade que compreende a ideia também. Pensar onde o objeto e ideia se confundem. Isso eu creio que traz um sentido da graça e traz vida”.
Na obra “cinema elástico”, composto por pregos e elástico, por exemplo, uma série de hipóteses se apresentam e o espectador não sabe bem o que acontece a sua frente. São micro tensões que tem um sentido de uma espécie de coisa pré-formal, estrutural, anterior a uma narrativa, de forma bastante elementar. É uma obra que acontece no entre. “Esse ‘entre’ me interessa muito, esse lugar de passagem, de correspondência me interessa bastante. Entre o mundo material e o espiritual. Existe sempre essa tentativa de compreensão que traz uma espécie de comunicação de um lugar ao outro”.
Ele tem um interesse especial nesse espaço poético de trânsito entre nós, da imaginação. O background de arquitetura o acompanha mesmo que de forma silenciosa. Exercícios para que algo aconteça nesse espaço entre nós. Pensar que esse lugar real pode ser. O espaço como uma forma de experimentar e celebrar a arte.
Existe sempre o acaso num espaço expositivo, segundo ele. Reflete que o mundo é imenso ao nosso redor, inclusive em nossos corpos e não temos consciência absoluta disso. O inconsciente existe e o acaso idem. Portanto, é algo que precisamos considerar em nossas vidas, em nossas ações e processos, permitindo as questões todas que surgirem e ir dançando conforme as situações que se apresentam. “As vezes em determinado projeto tem uma execução extremamente fiel ao que foi planejado e tem vezes que há imposições onde não há escolha”.
Para ele, é importante reconhecer, considerar e valorizar a relação entre acaso e método, chance e arbítrio para perceber e buscar as soluções. A escultura, por exemplo, funde espírito e matéria, objeto e ideia, transformação do inorgânico em algo vivo, a substância em espírito. “Ser livre é ser responsável”, citou ele com essa frase de Maria Zambrano.
“Nós, nesse início do século XXI, sabemos que devemos nos tornar mais lúcidos, mais espirituais e mais responsáveis do que nunca e nós sabemos, ao mesmo tempo, que nunca a humanidade esteve tão cega, embrutecida e irresponsável. Nós o sabemos porque constatamos que quase toda a vida social é controlada por um populismo industrial que destrói a consciência individual e coletiva”. Bernard Stiegler
“A crise global neoliberal deflagra em escala exponencial desamparo e precariedade. A pandemia esgarça, precariza e desestrutura os laços e as relações sociais. Vivemos uma tragédia político-sanitária, uma tragédia simultânea, um desafio mortal literalmente, penso sempre diante de circunstâncias tão hostis e ameaçadoras em grande escala numa alternativa viável em termos de uma micropolítica e deliberadamente trabalhar para melhorar meu entorno, cuidar daquilo que esteja a meu alcance em relação aos demais e ao meu habitat psíquico e também espacial onde prevaleçam respeito, consideração e afeto e assim fortalecer o sentido de solidariedade. Está tudo em aberto e devemos repensar o sentido de união e procurar produzir esclarecimento e discernimento”.
É preciso prezar o respeito, a consideração e o afeto, ligando um ponto a outro pelo amor. Como numa teia que vai ganhando corpo à medida em que se conecta em um fluxo contínuo de encontros, trocas, silêncios, essências, acasos e precisão. Muita precisão para nos entrelaçarmos nesse embaralhado estético, dissonante e que se deixa ser afetado pelo outro e pelo espaço pulsante.
“O amor nos liga às coisas. Trata-se de uma real conexão, uma ampliação da individualidade que se relaciona e absorve essas outras coisas amadas. Aquilo que amamos se torna imprescindível e que não podemos viver sem sua presença e logo as propriedades do que amamos se tornam assim também para nós e então o amor vai ligando uma coisa a outra em uma estrutura essencial”. José Ortega y Gasset.
“Tenho orgulho do que você está me trazendo. Dá uma esperança para a gente… você está apostando naquilo que te move: afeto e respeito. Gostei de a gente ter trocado”. Disse-me ele, terminando nossa conversa.
Obrigada Damasceno, por esta conversa tão potente. <3