Para esta edição do Ensaio, decidi escolher alguns dos diários escritos pela Noemi Jaffe durante a pandemia, em seu facebook e instagram. Eles acompanham duas imagens do fotógrafo japonês Hiroshi Sugimoto, que casam com as palavras de Jaffe. Sei que os dois já estiveram por aqui, mas quando uma relação toca a gente mais de uma vez, por que não publicá-los novamente? Fora que a minha própria relação com a Noemi também mudou há cerca de 1 ano. Hoje faço parte do seu grupo de escrita da “Escrevedeira”e tenho mergulhado cada vez mais nas palavras. Autora de diversos livros, além de crítica, poeta, professora e sócia-diretora da “Escrevedeira”, Noemi Jaffe lançará seu novo livro “Lili” pela Companhia das Letras, em julho. Mais silencioso e pouco visual, este Ensaio chega potente, provocando reflexões importantes para os dias que habitamos.
20/06/2021
quinhentas mil escovas de dente com cerdas gastas. quinhentos mil travesseiros mais fundos no lugar da cabeça. quinhentas mil canetas com carga pela metade. quinhentos mil pares de meias com um furo na costura. quinhentas mil xícaras de onde não sai uma sujeirinha. quinhentas mil carteiras de identidade com o plástico amassado no canto. quinhentos mil jeitos de dizer bom dia. quinhentos mil nomes com apelidos. quinhentas mil fotografias que não saíram muito boas. quinhentos mil projetos sobre o que fazer nas férias. quinhentos mil emails apagados. quinhentas mil raivas que não puderam ser transmitidas. quinhentos mil erros gramaticais. quinhentas mil coceiras, micoses, barba por fazer, cabelos tingidos, sobrancelhas feitas, estojinhos de maquiagem, prestações a pagar, livros da faculdade, prateleiras com fotos, aquilo que não foi dito, o que ainda deveria ser. quinhentos mil silêncios sobre o que, de tanto ódio, não se consegue dizer mas que vai ser dito de algum jeito por quinhentas mil pessoas e mais quinhentas mil e mais quinhentas mil a cada vez que o genocida matar mais uma escova de dentes.
07/04/2021
sequei. daqui, hoje, não sai nada. só me sinto apta a receber: o que leio, frases do passado, notas em caderninhos, falas de quem admiro, receitas da internet, o pelo da mia, o rosto da samba. espremo, ensaio, anoto, apago, desisto. ontem naveguei em mares perigosos e balancei num barco em que as oscilações eram ora vida e ora morte, ora oração e ora descrença, ora acompanhamento e ora solidão. dormi sonos intranquilos e não acordei como um inseto monstruoso, não fui gregor samsa nem mersault. olhei no espelho e só tinha mesmo eu, estremunhada, os mesmos olhos ineptos. sonhei que morria muitas vezes, voltava e morria outra vez. de manhã soube da morte do professor alfredo bosi e lembrei da sua voz baixa, dos modos discretos, dele recitando dante inteiro de cor. mais uma palavra a menos, menos uma palavra a mais. hoje acordei na mesma pele. seca.
30/03/2021
o mundo está acabando ou o mundo está começando ou estamos todos sonhando ou nunca a realidade foi tão real ou é bobagem achar que sonho e realidade são coisas diferentes ou estamos todos doentes ou dizer isso é uma hipocrisia diante de quem está mesmo doente ou dizer isso é que é a maior sinceridade ou precisamos ajudar a todos ou somos nós que precisamos de ajuda ou por que fico falando nós se o problema sou eu ou por que fico me escondendo por trás desse nós ou eu é que não sei de nada ou finalmente eu disse eu ou era melhor ter ficado com o nós ou preciso de companhia ou não preciso de ninguém ou estou tão cansada ou foda-se meu cansaço ou nem estou tão cansada assim ou a melhor coisa do dia é a notícia da elidia estar melhor ou esse chinelo furado e velho que pensa nos governar não tem força nem pra dar golpe num boxeador aposentado e obeso ou amanhã mesmo haverá um golpe e não terei tempo de conversar com o sergio ou nada vai mudar ou tudo já está mudando.
18/03/2021
saca e ressaca é o movimento das ondas do mar, que vão e revão, vêm e revêm. a minha, de hoje, é pelo vinho que, como uma onda, avançou e retrocedeu pelos fluidos dentro de mim e acabou se manifestando nos olhos baços, o dia inteiro dormentes. leio sobre anjos e os debates medievais sobre se eles eram ou não incorpóreos como deus, se sentiam cheiros ou se eram feitos de fogo ou de ar e quero me dedicar somente a isso. ficar com os olhos semicerrados e pensar em anjos – como aquele que me foi diretamente designado e cuja única função é reservar vagas para estacionar. como os polvos soltam líquidos roxos e os moluscos expelem conchas, os humanos expelimos palavras, nossos ninhos feitos de sons, de espanto e de medo. do espanto nascem a arte e a ciência e do medo nasce o mal, que se traduz em falta de remédios para entubação, em mais de duas mil mortes por dia, em prisão de pessoas que estendem faixas e em negacionismo. o medo, aliado à palavra, mata, porque teme morrer.
17/03/2021
vou abrir uma importadora: a empresa vai importar só o que importa e não importar o que não importa. um rabino antigo me disse que, no casamento judaico, quebra-se um copo para que o casal sempre se lembre de não se importar com os copos, porque eles não importam e, na verdade, muitos casamentos terminam por causa deles e afins, como pastas de dentes e pias. sinto falta dos meus amigos, da padaria, de fazer não sei o quê na rua, de não saber o que vou fazer e acabar fazendo o que não imaginava. sinto falta de mim mesma. tive, talvez, o melhor aniversário de que me lembro em muito tempo, com tanto carinho e alegrias pequenas de amores vãos. tudo deve ser mais vão, mais à toa e sem necessidade. que a gente se encha de profusão, que haja mais perdularidade e exagero. exagerem, amigas e amigos, sejam mais prodigiosos e deem mais do que os outros precisam. abundem e sobrem, para que só reste o que não cabe mais.
27/02/2021
contar um sonho é traí-lo, porque, verbalizado, ele é obrigado a uma linearidade que não tem. nessa linearidade da sintaxe, somos forçados a preencher os vácuos, atribuindo um nexo de que o ouvinte precisa. e qual não é a frustração quando nem o ouvinte se interessou e nem o relato foi fiel? seria preciso inventar uma linguagem onírica e dizer: papagaios nasciam nos pés sem cor esmagado palavras cruzadas. sonhos são extratos moles da alma, como o fio das aranhas ou a tinta do polvo. é o líquido viscoso da mente em repouso, que expele fragmentos e cria aglomerações promissoras ou terríveis. é o cérebro na negativa do tempo arbitrário, reunindo passado, presente e futuro num único organismo. ao relembrá-los, de manhã, é tão bom permanecer no caos recém apagado. mas assim que sentimos a urgência de contá-lo, já o transformamos em símbolo e ele se dissipa, desobediente como todo diabinho
12/09/2020
parece que estamos na confluência de dois sistemas de signos e significados reprimidos, que, por forças diversas, eclodem de suas cavernas para a tona. por um lado, muito daquilo que a normatividade utilitarista reprimiu, como a loucura, a negritude, as diferentes formas de sexualidade, o feminino. e, por outro, e como resposta a esse primeiro, aquilo que a razão civilizatória e iluminista reprimiu também: a ignorância, a vulgaridade, a mentira, a vileza, tanto moral quanto estética. assistimos e fazemos parte, agora, de um confronto entre forças polares reprimidas, as duas muito fortes e, inclusive violentas, muito em função da violência com que foram subjugadas. o que fazer? apelar para aquilo que põe em jogo dialético os dois lados: a razão sensível, a poesia, o sonho, a luta inteligente. penso que é inevitável que os esforços assim chamados identitários acabem por vencer a briga contra os fantoches fascistoides que pululam, agora felizes, pelas ruas. o problema é quando e como. talvez não estejamos (eu, ao menos) mais por aqui. enquanto isso, preciso encontrar meu sentido: enlouquecendo, deslocando, desvirtuando e morrendo, para poder viver e ajudar a viver. brigando quando posso, ficando quieta quando preciso.
25/03/2020
hoje, medo. um que não tinha ainda sentido. de golpe militar, alguns minutos de pânico, talvez. certeza de que o apego ao celular, adição mesmo, precipitam a desproteção. a leda me diz pra me separar dele, se preocupa. deixo em outro ambiente, e retomo 2666, como escreve bem o filho da mãe do bolaño, mesmo sem empatia nenhuma com os personagens, quase desprezados por ele. ele desqualifica os intelectuais que descreve e eu, metida a intelectual, acabo concordando, mas me sinto mal. o João toca violão no quarto do lado e me emociono escutando quando tá escuro e ninguém te ouve, quando chega a noite, de um jeito que só ele sabe cantar. discutimos um pouco, fazemos as pazes sem falar nada, que é o melhor jeito. ouço a aula da Claudia Mello pelo youtube e me emociono de chorar, de amor por todas as possibilidades que existem.