O que o corpo lembra – Ensaio Palavra-Imagem com Manuela Eichner e Julia Feldens
Nesta edição convidei a artista Manuela Eichner com suas colagens para acompanhar as palavras de Julia Feldens. Eichner é uma artista visual múltipla, sua produção abarca desde vídeos e performances até oficinas colaborativas, passando pelo desenvolvimento de ilustrações, murais e experiências ambientais. Nos últimos anos coletou imagens durante sua morada em Berlim até sua volta a São Paulo, em fevereiro de 2020. Neste tempo de muitas revisões e silêncios provocados pela pandemia, a artista disse ter vivenciado e reverenciado um processo criativo mais ligado à intuição, saindo da lógica e estando mais próxima do corpo e da experiência manual. Feldens é artista graduada em comunicação das artes do corpo e mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP e há seis anos realiza uma ação-manifesto intitulada “Casa Líquida”, na qual compartilha sua casa com artistas que queiram usá-la como espaço criativo. Durante um ano nessa residência artística de Julia, Eichner criou a obra “O que o corpo lembra”, resultado da oportunidade de se aproximar do tempo: o tempo de outros seres, das cores, das imagens, das plantas, do sol, do céu, da experiência. O resultado? Uma lindeza.
Isso é sobre uma experiência.
E não existe experiência que não seja coletiva. Existe a casa, o gato, a planta, a imagem, a cor, o sol, o céu, eu, o outro. Mas a casa só é casa porque existe o gato, a planta, a imagem, a cor, o sol, o céu, eu e o outro. A planta só é planta porque existe a casa, a cor, a imagem, o céu, o sol, eu e o outro. Aquela imagem só é aquela imagem porque existem as outras imagens, as cores porque existem as outras cores, o sol porque existe o céu, eu porque existe o outro. Ninguém é só. Só somos na relação com o mundo. Então, se isso é sobre uma experiência, isso é sobre encontros.
Para construir uma experiência é preciso fazer as pazes com o tempo. Não podemos controlar, desprezar, contestar, renunciar o tempo, é preciso reverenciar, cultivar, acatar o tempo, com todo o corpo. Nossa relação com o tempo não pode ser uma luta, precisa ser uma dança. Então, se o que vivemos foi uma experiência, esse relato é um manifesto.
Isso é um manifesto.
Reivindicar o acontecimento: os encontros e sua duração! Sua duração natural, seja ela qual for. Reivindiquemos o tempo da experiência para aí sim poder partilhar o que o corpo lembra.
Essa experiência durou um ano, um ano pandêmico, de reclusão e urgência. E nunca foi tão importante viver o presente. Nem antes, nem depois, agora. Para e olha, você está aqui.
Ficamos juntas de março a março, permitindo-se ir, voltar, dar, receber, inventar contornos, esconder, mostrar, saltar, voltar atrás, descobrir. Uma dança íntima com o tempo. Doze meses à deriva. A palavra “planeta” provém da raiz grega planaomai, que significa “vagar-se”, “perder-se”. Então “estar á deriva é o primeiro atributo de todos os corpos desse universo”, escreve Emanuele Coccia. Reivindiquemos essa natureza!
Vagar é dar a chance ao tempo de lhe entregar o acaso. Perder-se é dar chance ao acaso de decifrar o que se esconde a sua frente. O olhar vaga pelas imagens, perde-se até enxergar. Combinar elementos, sentir as cores, retornar a deriva até encontrar um lugar, ficar lá. Revelar.
O acaso é o maior presente para quem cria, como escreve Peter Pál Pelbart, “é um encadeamento mágico ou ficcional de eventos, um delírio concreto, capaz de embaralhar lugares e o tempo”. Mas para ganhá-lo é preciso dizer sim. Sim, para iniciar o jogo. “Saber afirmar o acaso é saber jogar”, provoca Nietzsche.
Na casa-casulo que engendramos escolhemos dizer sim, mesmo com toda a dúvida que vinha de fora, mesmo com todo o medo. E nesse jogo inaugurado, nesse tempo instaurado da experiência, reafirmamos a vida mesmo estando a espreita da morte.