O dentro e o fora sem fronteiras – A obra de Amilcar de Castro no Mube
“O pintor “emprega seu corpo”, diz Valéry. E, de fato, não se percebe como um Espírito poderia pintar. É oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura. Para compreender essas transubstanciações, é preciso reencontrar o corpo operante e atual, aquele que não é uma porção do espaço, um feixe de funções, que é um trançado de visão e de movimento.
Basta que eu veja alguma coisa para saber juntar-me a ela e atingi-la, mesmo se não sei como isso se produz na máquina nervosa. Meu corpo móvel conta com o mundo visível, faz parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visível. Por outro lado, também é verdade que a visão depende do movimento. Só se vê o que se olha. Que seria a visão sem nenhum movimento dos olhos, e como esse movimento não confundiria as coisas se ele próprio fosse reflexo ou cego, se não tivesse suas antenas, sua clarividência, se a visão não se antecipasse nele? Todos os meus deslocamentos por princípio figuram num canto de minha paisagem, estão reportados ao mapa do visível. Tudo o que vejo por princípio está ao meu alcance, pelo menos ao alcance de meu olhar, assinalado no mapa do “eu posso”. Cada um dos dois mapas é completo. O mundo visível e de meus projetos motores são partes totais do mesmo Ser.
Essa extraordinária imbricação, sobre a qual não se pensa suficiente, proíbe conceber a visão como uma operação de pensamento que ergueria diante do espírito um quadro ou uma representação do mundo, um mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre ao mundo. E esse mundo, do qual ele faz parte, não é, por seu lado, em si ou matéria. Meu movimento não é uma decisão do espírito, um fazer absoluto, que decretaria, do fundo do retiro subjetivo, uma mudança de lugar milagrosamente executada na extensão. Ele é a sequência natural e o amadurecimento de uma visão… Digo de uma coisa que ela é movida, mas, meu corpo, ele próprio se move, meu movimento se desenvolve. Ele não está na ignorância de si, não é cego para si, ele irradia de um si…”
O olho e o espírito, de Merleau Ponty – texto sugerido por Gal Neves, curadora-chefa do Mube, para nossa conversa.
Amilcar de Castro e Paulo Mendes da Rocha, dois ícones. Sim, isso todo mundo sabe. Juntos, atravessados um pelo outro no Mube. Essa é a novidade. Ou não, afinal a exposição “Amilcar de Castro, na dobra do mundo” com curadoria de Guilherme Wisnik está em cartaz desde fevereiro. Uma mostra para ir e voltar, sentir e revisitar quantas vezes forem necessárias. Depende do clima, da luz, do seu estado de espírito. Fui, a primeira vez, em um sábado, numa tarde de outono com minha mãe. Na segunda, fui com meu sobrinho de 6 anos, para vivenciar uma nova experiência e novas perspectivas.
As esculturas a céu aberto, entrelaçadas com a arquitetura de Paulo me fizeram refletir e muito sobre Gaston Bachelard em “A poética do espaço”, entre suas portas e janelas, entradas e saídas, encontros e desencontros. As grandes estruturas de aço corten, sem cortes, sem junções inventadas, apenas placas que se moldam e são moldadas pelo espaço são de uma magnitude ímpar. Sentimo-nos parte da obra e deixamo-nos permear por ela. Dois corpos interagindo em sua mais alta potência. São caminhos sugeridos, portais propostos e um esconde-esconde entre o eu e a obra. São formulações de espaço importantes para este momento no qual nossas estratégias e nossos modos de circulação foram muito alteradas e restritas.
Uma ideia de espaço da experiência na qual as ebulições culturais efervescentes e políticas tem nosso corpo atuando diretamente. O dentro e o fora da obra estão sem fronteiras. É pelo espaço e no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais, as lembranças são imóveis, dizia Bachelard. Ele discute que as memórias não se situam no tempo, mas em espaços que têm a função de “conter” determinado tempo. Por isso a importância do espaço para a memória e o devaneio de cada corpo.
“Ele transforma a obra em um espaço de compartilhamento – posso estar inundada pela obra do Amilcar, mas eu acho que a gente vive um momento no qual nossos espaços de trânsito, de circulação, de encontro, ganharam uma complexidade que a gente não imaginava. Essa simples circulação de ar, essas forças que animam a ideia de espaço… tudo foi muito transformado pela pandemia. Tenho a sensação de que por conta de tudo isso, um trabalho como do Amilcar, que parece ter no DNA uma articulação de espaços, mexe muito mais com a gente neste momento.” Comenta Gal Neves, curadora do Mube, com quem conversei na última semana.
O corpo humano não é só algo que ocupa um lugar no espaço, mas também articula espaços. Somos videntes e visiveis e esses espaços todos se animam. Tanto dentro como fora, trazem outro vigor para o trabalho de Amilcar. Essa porosidade com o espaço da cidade, a avenida, o jardim… Paulo dizia que a área externa era uma área expositiva. O dentro e o fora como um fluxo, um espaço movente.
“Existe uma elementaridade do gesto, como um gesto de extrema experimentação e desafiador como poética do artista e por um rigor. Um gesto de extrema liberdade. Esse fluxo dentro fora que tem a dimensão corporal também tem um traço de liberdade. São frestas. Ele convoca o tempo inteiro a gente a novos olhares” devaneia Gal.
“O Paulo parece que sempre sonhou com esse museu habitado pelas obras do Amilcar. Ele mesmo testou os posicionamentos das obras, pensou nas formas que os trabalhos iam ter. A cidade é o lugar do aprender, para o Paulo. A ideia de museu para ele é uma ideia pedagógica e trazer o Amílcar é acentuar o desejo dele. A gente pensa o espaço do museu como uma pele. Uma pele ao mesmo tempo porosa ao trabalho e que propõe um embate, uma fricção. Não é um diálogo que se pretende harmonioso, mas que é construído na fricção. É bonito pensar nos materiais, nas linhas. São linhas que contornam o trabalho e são linhas que o trabalho faz o espaço ser contornado”. Gal Neves
Rodrigo de Castro, filho de Amílcar me conta que Paulo e seu pai nunca se encontraram em vida, mas tinham tudo que era necessário para terem um diálogo potente. “Parece para mim, que aquelas esculturas encontraram um lugar onde tudo dá certo e é tudo perfeito. Tinham que ficar lá para sempre. Quando vi a montagem, vi que tinha um pensamento de ambos os lados que convergem para uma mesma coisa. A arquitetura do Paulo no vão livre do Mube, com aquelas linhas… ali se estabelece uma conversa de imediato com os vãos de luz que surgem dentro das esculturas do Amílcar. Esses vazios que surgem nas sobras de imediato começam a interferir no visual do espectador. Quando você anda embaixo da obra esses vãos de luz vão se modificando, criando novas perspectivas e novas maneiras de presenciar a obra de arte. O Mube estabelece com a escultura uma mesma linha de pensamento. A linha do concreto do vão vazio fazem com que as obras e a arquitetura formem um único conjunto.”
Claro que não é só nessa mostra que essa porosidade entre corpo e espaço acontece, mas precisamos estar despertos a esses acontecimentos de troca, de rastros, de viver e ser vivido, de sentir e ser sentido. Nossos corpos interagem com a magnitude de suas obras que parecem serem layoutadas e encaixadass de forma precisa no terreno de Paulo. Existe um entrar e sair, habitar e ser habitado constante nessa visita. Ou nessa visita plural. Existe o eu e o todo e esse plural coletivo que surge durante essa experiência potente que integra obra e museu, artista e público, cidade e humanidade, criando uma simbiose geradora de novas possibilidades de existências e experiências no agora.