Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe – Ensaio Palavra-Imagem com Ilana Feldman
Nesta edição do Palavra-Imagem, publico em primeira mão trechos do ensaio da “Não ver”, da pesquisadora Ilana Feldman (1978) que está na Revista Serrote #38 que será lançada no dia 28 de julho (quarta-feira), às 18h, em uma live transmitida pelos canais de Facebook da Serrote e YouTube do IMS. Em formato de diário, a pesquisadora alterna textos e fotografias de sua autoria. Recém mudada para Brasília, Feldman reflete sobre temas como a atual situação política, a arquitetura de Brasília e a vida em pandemia. Em seus registros, violência política, fundamentalismo religioso e incertezas da quarentena se misturam, afetando os sonhos e as relações pessoais: “Com frequência me pergunto diante das imagens de um mundo que eu vi e que não mais voltará: o que dirão e mostrarão os livros didáticos de história que nossos filhos e as gerações por vir ainda hão de ler na escola, depois, muito depois, que tudo isso passar?” reflete ela.
Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe.
Clarice Lispector
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Ofuscada pela luminosidade dessa imensa abóboda celeste, até mesmo em dias nublados, sou aqui tomada pela sensação
de não conseguir ver nada. Em meus percursos ao redor de nossa quadra, enxergo apenas o nome de Deus – e suas varia-
ções, como Luz e Paz – inscrito, pichado, escrito e até mesmo rasurado em troncos de árvores, postes de luz, sinalizadores de
trânsito, caçambas de lixo. Seria essa uma espécie de ativismo evangélico e político? A manifestação de um delírio coletivo, de
uma fascinação total? Ao contrário do slogan do governante eleito, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, nunca tive tanta certeza de que aqui Deus e o diabo estão em cada detalhe – abaixo de tudo e de todos.
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Essa madrugada sonhei com palavras, já não recordo quais. Mas lembro que cada palavra valia por um número, e a soma
desses números era igual a 1944. 1944 é um ano que sempre me intrigou. Em maio de 1944, revela Harun Farocki em seu ensaio fílmico Imagens do mundo e inscrição da guerra, pilotos norte-americanos sobrevoaram o campo de Auschwitz-Birkenau e fizeram fotografias aéreas, que foram posteriormente analisadas na Inglaterra. Naquele momento o campo se tornou visível aos olhos dos aliados, mas continuou sendo ilegível, pois coisa alguma foi percebida. Em 1944, sabemos, as câmaras de gás e os fornos de incineração funcionavam a pleno vapor no campo de extermínio: entre os meses de abril e julho, 24 mil judeus foram exterminados por dia. Nesse mesmo ano, testemunhos de dois fugitivos e quatro fotogramas da incineração ao ar livre de homens e mulheres chegaram às forças de resistência, mas nada, absolutamente nada, foi visto, reconhecido ou imaginado a tempo pelas potências aliadas, pela democracia ocidental, pelas luzes da razão. Nesse contexto, o filme nos leva a interrogar: como é possível fazer imagens para não ver o que acontece?
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Acordo com o peito cheio de esperança, com a sensação de que um filho é uma abertura radical ao infinito. “Entenda
isto como um sinal”, li outro dia sobre um muro. Nem tudo foi visto. O que é, para o bem comum, um sonho? Mensagem, deposição, oferenda, lamento, imaginação? Seriam os sonhos testemunhos dos dias correntes? Ou testa-
mento para os tempos por vir?
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Às 6h15 o sol desponta no horizonte todos os dias diante de minha janela. Enorme e flamejante, ele me cega. Todos os dias, o mesmo ritual, como se a normalidade da vida seguisse seu curso. Todos os dias, não sei mais distinguir o que é normal do que não
é. O que vejo do que não vejo. Não sei mais o que faço em nome da vida e o que me expõe ao risco da morte.
Outro dia uma família veio visitar seus parentes no prédio. Estacionaram abaixo de minha janela e desceram do carro sem
alarde. O pai, um tipo grande e careca; a mãe e dois meninos muito louros que pareciam saídos do filme A fita branca, de
Michael Haneke, vestiam camisetas verde-amarelas, em claro apoio ao presidente sem partido, com os dizeres em letras gar-
rafais: “O meu partido é o Brasil”. Não sei mais quem são meus vizinhos.
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Desconfio se estou sonhando acordada ou dormindo em vigília. Desde outubro de 2018 não sei mais distinguir os pesade-
los das notícias de jornal, os sonhos intensos dos raios vívidos. Minha filha vem interromper meu torpor. Com o rosto risonhoe límpido, ela me entrega uma boneca cujas mãos estão besuntadas de álcool em gel.
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Acompanhando as breves crônicas de uma colega sobre um cemitério de Copenhague, me pergunto por que, afinal, visitar cemitérios nunca foi um programa brasileiro, nem mesmo antes que os nossos tenham se transformado nessa imensa e insalubre vala comum. Seria em razão de nossa crônica falta de memória e perspectiva histórica? Pela ausência de charmosos corvos e ciprestes?
Em outubro de 2019, numa ida à Portbou, cidade espanhola fronteiriça com a França, visitei o pequenino cemitério onde Walter Benjamin foi enterrado após cometer suicídio em 27 de setembro de 1940. Fugindo da perseguição nazista, sem forças e sem esperança, Benjamin colocou um ponto-final em sua vida em um lugar emparedado entre os Pirineus e o Mediterrâneo, entre o fechamento da montanha e a abertura do mar. Sobre seu túmulo, alguém – uma criança ao que parece – lhe deixou como ho-
menagem um carrinho.
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Como iremos, futuramente, nos recordar deste tempo, este tempo de suspensão, de exceção, de extinção? Este tempo nebuloso e indefinido, sem escola, sem ajuda, sem família nem amigos por perto, sem data para terminar, sem perspectiva de mudança, sem nada para começar. Este tempo em que sensações, pensamentos, angústias, pesadelos, exaustão e esquecimentos se confundem, como se vivêssemos suspensos naquela espécie de densa nuvem de poeira que costuma vir depois de terremotos e cataclismos.