Nunca mais derramou uma lágrima – Ensaio Palavra-Imagem com Julia Codo e Guillem Vidal

Cassiana Der Haroutiounian

Convidei a escritora Julia Codo para se inspirar com as imagens bucólicas do fotógrafo espanhol Guillem Vidal. Em sua série “Forgotten Playgrounds”, Vidal traz imagens etéreas de parques abandonados que foram (re)tomados pela natureza ao longo do tempo. Julia, formada em Letras pela USP, é editora, escritora, tradutora, integra a antologia de contos Leia Mulheres e lançou há poucos meses seu primeiro livro “Você não vai dizer nada” pela editora Nós. Atravessada por silêncios, pela imperfeição e estranhezas da vida. Em um microcosmo do passado e do melancólico, Julia e Guillem se complementam e nos provocam a abrir uma caixinha de tempos diferentes, acessando nossas angústias e hiatos.

Aqui está o e-mail que eu deveria ter escrito há alguns anos e não escrevi.

Sei que você vai achar estranho receber estas palavras depois de tanto tempo, mas ontem vi uma fotografia – na verdade, algumas fotografias – e lembrei do que você disse aquela noite no carro: que se os seres humanos um dia desaparecessem, em cem anos a cidade estaria tomada pelo mato.

Depois desse dia não nos vimos mais.

Você vestia aquele seu casaco verde e tinha os olhos cansados; as pupilas também me pareceram mais dilatadas que o normal. Então continuou falando, contou de um parque de diversões na Ucrânia que ficava a poucos quilômetros de Chernobyl e estava prestes a ser inaugurado quando aconteceu o acidente nuclear. Por razões óbvias, ele nunca chegou a abrir as portas. O mais absurdo, você disse, é que passado algum tempo, e mesmo com toda a radiação, a natureza começou a retomar seu espaço, os brinquedos foram cercados pelo mato.

Lembrei disso ontem quando vi as fotografias, e a primeira coisa que senti foi frio.

Não sei, é uma benção contraditória. Difícil não amar a recuperação do cenário original, a vida fluindo. Mas também queria te dizer, queria te perguntar, você não sente falta de tudo?

Imagine a cena, uma piscina verde coberta de musgo aveludado. Pense no ruído subaquático daquela água, ou talvez na ausência de ruído, na água há não sei quanto tempo sem ondulação. Uma penumbra.

Eu não devia estar te contando isso, mas ontem também fiquei reparando em algumas coisas, uma toalha de piso enrugada, uma meia bege murcha pendurada no varal – bege não, talvez verde, verde musgo. Um frasco de álcool em gel quase vazio.

Faz tempo que estou para te escrever, desde que você sumiu. Não sei onde passou esses tempos de isolamento, se já se vacinou.

O que sei é que você vai achar bonito todo esse verde, a natureza reocupando o mundo, mas eu não posso deixar de pensar na infância transformada em ruínas, prostrada como um terreno baldio. E você poderia ao menos ter se despedido.

Também me lembrei de quando erámos pequenos, do playground sobre o piso acimentado, dos joelhos ralados, do dia em que seu pai nos levou no estádio. Nosso time perdeu e você chorou.

Você chorava muito naquela época. Depois de adulto, acho que nunca mais derramou uma lágrima.

Quem sabe o que a passagem do tempo terá feito com aquela praça, aquele bairro. Estou te escrevendo essas bobagens há uns quinze minutos e, nesses mesmos quinze minutos, vinte anos se passaram no meu pensamento. Não te causa angústia o tempo não existir de verdade, ser uma ilusão da nossa mente?

Você me disse uma vez: tudo acaba, até mesmo a terra vai desaparecer um dia.

Quanto tempo será que ainda temos?

Escrevi “quanto tempo” na barra de pesquisas do Google, e ele me sugeriu estas buscas:

quanto tempo falta/ quanto tempo durou a gripe espanhola / quanto tempo o covid fica no corpo / quanto tempo para cozinhar ovo / quanto tempo demora um ted / quanto tempo vive uma borboleta / quanto tempo durou a peste negra.

Esse tipo de coisa.

Queria te contar. Espero que esteja tudo bem.

Mande notícias quando puder.