Cartas queimadas – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Roman, Marcelo Amorim e Nino Cais
Neste Ensaio Palavra-Imagem, os amigos, parceiros de vida, criativos e artistas Nino Cais e Marcelo Amorim trazem suas obras da exposição “Poema a dois | Cartas queimadas” que inaugurou ontem, sábado, no FONTE, espaço independente de arte que fundaram em 2013. Com interlocução e texto da curadora Ana Roman, “Poema a dois | Cartas queimadas” propõe reflexões sobre o corpo masculino e suas relações de aproximação e distanciamento entre violência e amor. Roman, que se dedica a curadoria e pesquisa em arte contemporânea, foi curadora assistente da mostra “Entre Construção e Apropriação: Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman nos anos 60” (SESC Pinheiros, 2018) e pesquisadora/assistente de curadoria das mostras “Ready Made in Brasil” (Centro Cultural Fiesp, 2017), “rever_Augusto de Campos” (Sesc Pompeia, 2016). Ana Roman curou diversas mostras individuais e coletivas. Na última semana, desenvolveu um texto exclusivo para o blog, pautada, além de toda a obra conjunta dos dois, pelo afeto que permeia esse encontro na arte e na vida.
A forma pela qual construímos a mostra Poema a dois | Cartas queimadas não me permite escrever este texto em um tom que não o pessoal. Ao receber o convite para ser interlocutora deste projeto, que parte do encontro e da relação afetiva entre Marcelo Amorim e Nino Cais, passei a habitar um emaranhado de trocas afetivas, artísticas e intelectuais que existem entre os dois artistas, parceiros de longa data e fundadores do Fonte, espaço que recebe o projeto. Descrever tais profundas relações de afeto e amizade não me parece possível. E, na tentativa de explicá-las, tomo emprestada a metáfora de Gonçalo M. Tavares, que compara trocas afetivas a próteses psicológicas. Para Tavares, as trocas afetivas são talvez as mais antigas próteses que podem existir e são uma condição de nossa vida social. A fisiologia destas próteses é transparente, porém, elas guardam em si e arquitetam uma rede de indícios, constituída por objetos brutos ou sólidos, como fotografias, pequenos objetos e cartas. Uma parte desta rede formada em torno das trocas entre os dois artistas é encontrada nos próprios trabalhos.
Nino Cais e Marcelo Amorim dividem o interesse pela saturação de imagens e de objetos no mundo contemporâneo. Alguns destes artefatos imagéticos e físicos nos abordam involuntariamente e nos deixam em um estado de indiferença, sobretudo quando inundam nosso cotidiano em um fluxo contínuo, ininterrupto e denso. Os dois artistas interpelam, com operações poéticas distintas, este fluxo, produzindo outros significados e sentidos. Na exposição reunimos uma pequena amostra destas operações de desvio, nas quais os dois artistas tensionam papel da imagem nas pedagogias e processos de constituição de masculinidades contemporâneas.
Em vídeos, colagens, pinturas e esculturas, a figura masculina se faz presente a partir de fragmentos, índices e alegorias. Nos momentos nos quais potencialmente aparece em sua totalidade, tal figura é desconstruída pelo procedimento de trabalho dos artistas: não parece interessar, para eles, quem são os sujeitos da representação, mas o modo pelo qual elas carregam, em seus corpos, as marcas das práticas disciplinares e dos atos discursivos que constituem as políticas de gênero. A repetição garante a existência do gênero e, somente em sua exortação, ela pode ser desmascarada como relação social (ou seja, como construção e como dominação). A repetição é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade e eficácia da política de gênero, e ainda é a que a faz falhar. É na repetição incoerente, ininteligível, inadequada e defasada em relação ao performático ideal, que reside a sua possível subversão. Subverter a performatividade do gênero joga com a relação entre o que é dito e o que se diz: performa-se de maneira incoerente e ininteligível aquilo que se diz que eu sou e aquilo que eu digo que sou. As poéticas dos dois artistas aqui reunidos colocam-se diante destas repetições e lacunas do dizer quem sou.
A individualidade da forma pela qual eles ocupam estas lacunas deve ser também ressaltada. Nino Cais mergulha em uma história dos objetos e constitui uma espécie de iconografia de certa sexualidade viril. Já Marcelo Amorim traz à tona uma certa banalização da violência que constitui a sociabilidade masculina. O que salta aos nossos olhos na poética dos dois artistas são, para além dos corpos violentados e sexualizados, as marcas da realização das expectativas de gênero. Somos lembrados, por exemplo, de uma potência de agir socialmente identificada com o masculino e que imprime sua marca no corpo de um outro e que, perante um certo sofrimento obsceno deste outro, torna-o também objeto de um certo fascínio fetichista.
Em Poema a dois|Cartas queimadas, os dois artistas nos convidam a percorrer afetiva e pessoalmente uma reflexão sobre as políticas de gênero, tal que o intrincamento entre esferas pessoais e públicas é um dos pontos de chegada possíveis diante do universo de sentidos construído na mostra. A interlocução com os artistas durante o processo de concepção da mostra foi descadeador, em mim mesma, de uma outra possibilidade de imergir sobre o universo das identidades não hegemônicas, sobre sua potência de ação e sobre as violências que se inscrevem e estão marcadas em nossos corpos.
Visitação: 8 de setembro a 2 de outubro das 14h às 19h
(agendamento pelo email residenciafonte@gmail.com)
entrada: gratuita
Rua Mourato Coelho, 751 – Vila Madalena, São Paulo