O artista mexicano Bosco Sodi e suas obras de terra com destino cósmico
“Esse tempo da dureza das pedras, esse litocronos, não pode se definir senão como o tempo ativo de um trabalho, um tempo que se dialetiza no esforço do trabalhador e na resistência da pedra; ele se manifesta como uma espécie de ritmo natural, de ritmo bem condicionado. E é por esse ritmo que o trabalho obtém ao mesmo tempo a sua eficácia objetiva e a sua tonicidade subjetiva.” Gaston Bachelard, A terra e os devaneios da vontade.
Bosco Sodi, 1970, o “homem da terra”. Mexicano, diagnosticado desde cedo com dislexia, mergulhou nas artes plásticas inspirado pela mãe para tentar driblar sua condição. Do pai engenheiro químico, veio a admiração pelos experimentos.
“Dislexia te dá um pouco mais de liberdade de pensar e entender o mundo em pequenos fragmentos, como haikais” disse ele em nossa conversa no último sábado, 11 de setembro, pelo telefone.
Conhecido por usar materiais naturais e crus e por se apropriar da intimidade das substâncias para criar pinturas e objetos em grande escala, sua obra carrega múltiplas camadas de tempo, nas quais o destaque está mais no processo do que no resultado A impermanência e os estados porosos de cada acontecimento são sua bússola. Aos 17 anos, com o livro Wabi sabi na cabeceira, iniciou sua busca na não-busca, na atração pela natureza e pela imperfeição, se deixando atravessar pelos acidentes e pelo acaso dos materiais e dos estados da matéria-duração, respeitando seus devires e suas derivas. Tudo é transitório, incompleto e imperfeito, a perfeição é impossível e a imperfeição é o estado natural de todas as coisas.
“Acredito muito na troca de energia entre os quadros e o material. Respeito a natureza e tento entender e intensificar essa troca constante.” Bosco
Quando se mudou para Barcelona em 2001, não tinha uma linguagem própria e era sempre atraído pela matéria e nem tanto pela cor. Ainda eram pinturas planas. A cor se separava da matéria. Alguns cafés com o artista catalão Antonie Tapies abriram seus caminhos para a junção das duas em suas explosões de texturas, sentimentos e percepções. “A matéria fala por si própria” dizia Tapies.
“Por que não juntar cor e matéria e incitar o estômago e as vibrações no corpo?” Questionava-se. E assim seguiu com seu mantra, acreditando que quando há um processo sólido, há tudo que é necessário para uma obra de arte. Nessa anarquia de texturas e materiais, o melhor exemplo é sua obra Pangea, de 2010, uma reflexão sobre este grande continente numa explosão de lava em um painel de 4×12 metros, criado para o museu do Bronx.
A influência do budismo aplicada em todas as suas obras, traz a não dualidade, a unicidade de cada fazer e se ausenta de toda e qualquer repetição possível. Sua obra é muito mais resultado de processos intensos do que de inspirações. Ele escolhe na maioria de seus trabalhos não dar título para não sugestionar o espectador. Definido por ele como um processo xamânico, sua busca vem muito da solidão e de atuar diretamente em cada etapa do processo.
Seu diálogo afinadíssimo com a essência da matéria-prima e seu espaço as preenche de memórias únicas. A qualidade de tempo na peça, o sol, a brisa, o vento…. isso dita o resultado e é a maior aliada de sua potência, com uma estética japonesa e expressionista. Seus quadros como paisagens inventadas/topografias. São pigmentos trazidos de diferentes partes do mundo e extraídos de infinitas pedras com as histórias de seus territórios.
Colecionador de pedras de todos os cantos – assim como eu – e sem limites para aumentar sua coleção, acredita que nós somos escolhidos por elas e na energia que pulsa em cada uma. E também nas marcas de história e de tempos que nelas se acumulam para a obra-vida.
Com diferentes casas espalhadas pelo mundo e pedras e mais pedras acumuladas, em sua terra natal, Oaxaca, Bosco mantém a fundação de arte filantrópica Casa Wabi, projetada por ninguém mais ninguém menos que o gênio do concreto, o arquiteto japonês Tadao Ando. Há três anos, abriu a Casa NaNo em Tóquio. Sua conexão com o mundo oriental é longa. E não só a dele. A conexão do Japão com o México também vem de longa data. No início do século XVII, lideranças do atual Japão enviaram o samurai Hasekura Tsunenaga para a Nova Espanha para ser uma espécie de diplomata nipônico no que hoje é o México. Bosco acredita que o silêncio da cultura japonesa com o ruído dos latino americanos fomentam uma relação. Contou-me que em uma de suas exposições no Japão, um monge budista foi como espectador e seu entendimento da obra foi uma das mais bonitas. “Acho que os orientais entendem mais minha obra do que nós, do Ocidente.”
Com um discurso de novos começos e de que tudo sempre há de recomeçar e renascer, sua obra-performance-instalação “Tabula Rasa” começou ao amanhecer na Washington Square Park, em Nova York, com a instalação de 439 esferas de argila em pequena escala, terminando mais tarde quando os passantes eram convidados a levar pra casa uma delas, como parte precisa da obra.
Estas esferas foram feitas à mão pelo artista, simbolizando um dia da duração da pandemia de Covid-19. Trazendo práticas agrícolas indígenas mexicanas para os Estados Unidos, são recipientes para uma nova vida, contendo dentro delas três tipos de sementes – milho, abóbora e feijão – que sustentam e nutrem umas às outras, fornecendo um sustento equilibrado. Metáfora potente para a necessidade de cooperação e assistência mútua, essas plantas simbióticas encorajam a reflexão sobre nossa própria interdependência e confiança mútua e, crucialmente, no mundo natural que habitamos.
Essa e todas as suas obras trazem à tona essa efemeridade dos materiais elementares, podendo ser lapidado pelo entorno, sempre. Água, ar, fogo e terra contêm em si a própria essência da vida. A escolha de Bosco pelo barro e por pigmentos naturais, numa relação integral entre arte e terra o mantém numa linha de pensamento do devir e de um destino cósmico.