Sem regras nem teoria: os tapetes feitos de paixão da coreógrafa Noa Eshkol
Por Iara Biderman
Tapeçarias flutuam no salão sem forro e com vigas aparentes da Casa do Povo. Os tapetes foram criados coletivamente por integrantes do Chamber Dance Quartet, fundado por Noa Eshkol, coreógrafa nascida em 1924, em um kibutz na Palestina.
Costurados sobre lençóis ou mantas, os retalhos coloridos recolhidos nas ruas sugerem formas, padrões, simetrias inusitadas – como os movimentos de uma dança.
São também uma não-dança. Começaram a ser criados em 1973, quando um dos dançarinos, o único homem do quarteto, foi convocado para a Guerra de Yom Kippur e Noa decidiu que o grupo não dançaria até ele voltar. Enquanto esperavam, ela e as outras integrantes do grupo juntavam os panos descartados e teciam.
Penélopes modernas, não desfaziam o trabalho do dia durante a noite, como a rainha grega à espera de Ulisses. Agiam quase intuitivamente, sem estratégia nem metas precisas, desprovidas de “explicação ou ideologia”, como afirma Eshkol em seu único texto sobre as obras têxteis.
“[O trabalho] começou por um anseio totalmente pessoal de fazer alguma coisa, algo que não envolvesse uma decisão intelectual”, escreve a artista no texto intitulado “Sem regras, sem teorias – somente paixão”.
Se não havia regras racionais, o trabalho proposto pela coreógrafa era conduzido por algumas restrições: os tecidos não podiam ser comprados, só eram usados retalhos, trapos e roupas descartadas recolhidas de forma fortuita, que não podiam ser cortadas: as peças eram apenas descosturadas para serem aplicadas aos painéis.
“O material é ‘vulgar’, vernacular: tecidos encontrados no dia a dia, disponíveis em qualquer lugar em quase todas as culturas atuais, de forma que passam despercebidos a maior parte do tempo, quase como o ar que respiramos.”
Quase dançantes em suas composições abstratas, em suas formas tão orgânicas descosturadas de mangas, colarinhos e outras partes de roupas que redesenham as formas do corpo. Recompostas nas tapeçarias, lembram plantas, riachos, astros, aves, peixes. Ou seriam apenas gravatas desconstruídas?
A produção iniciada no tempo em suspensão do início da guerra de 1973 continuou mesmo depois da volta do soldado-bailarino e faz parte do acervo da Noa Eshkol Foundation, fundada por integrantes do quarteto de dança após a morte da coreógrafa, em 2007.
Sediada na casa onde Noa viveu, em Holon (Israel), a fundação também mantém todo o material sobre o sistema de notação do movimento, espécie de partituras ou guias gráficos de coreografias elaborado por Noa e o arquiteto Avraham Wachman na década de 1950.
Parte desse material também está na Casa do Povo, na exposição Corpo Coletivo, que integra a programação da 34ª Bienal de São Paulo, neste ano espalhada por espaços da cidade em uma rede de mostras paralelas de artistas participantes.
“Recebemos o convite da Bienal e a sugestão de realizar uma mostra com as obras de Noa. Pesquisamos seu trabalho, para ver o que tinha mais relação com a Casa do Povo. Há muita coisa, como o fato de ela trabalhar coletivamente, propor novas práticas pedagógicas. Além das tapeçarias com sobras de confecções: todo dia às 19h vemos sacos de retalhos nas ruas do Bom Retiro [onde fica o centro cultural]”, diz Marilia Loureiro, curadora da exposição.
Há um processo para se chegar aos tapetes. É preciso subir um lance de escadas para entrar nos bastidores do trabalho de Noa. A primeira parada da exposição não mostra as obras tecidas, mas o ambiente no qual foram criadas. São cápsulas arquivísticas (método de organização usado pela Fundação Noa Eshkol) com fotos de encontros, viagens, Noa conversando em casa, quase sempre com um cigarro na mão – uma Pina Bausch no kibutz. E livros, catálogos, partituras de movimento desenhadas por crianças e filmes delas dançando passando em aparelhos antigos de TV.
Os documentos vindos de Israel conversam com outras cápsulas de arquivo, criadas na Casa do Povo: fotos e trabalhos das crianças da escola progressista que existiu no centro cultural do Bom Retiro, jantares comunitários, cartazes mimeografados sobre as atividades.
“Procuramos as pontas onde o trabalho de Noa encontra o da Casa do Povo, criando um diálogo entre a história da artista e a da instituição. É memória viva: usar o passado como ferramenta do presente para pensar o futuro”, diz Loureiro.
Mais um lance de escadas e o preto e branco dos documentos e fotos ganha outro sentido na explosão de cores das tapeçarias suspensas. Contraste e continuidade da dança minimalista e precisa do Chamber Dance Quartet, os tapetes são exuberantes, com formas que parecem brotar incontidas: o sol no lago e mil sóis se pondo, maçãs brancas transbordando de vasos, insetos, notas de uma música clássica numa partitura de retalhos.
No dia 15 de outubro, os tapetes se moverão, voarão do Bom Retiro ao Ibirapuera, para encontrar outras tapeçarias de Noa, expostas no pavilhão da Bienal. O movimento continua, agora numa conversa à distância entre as cápsulas de arquivo e as obras têxteis. A parte “acervo em diálogo” da exposição de Noa Eshkol fica na Casa do Povo e o conjunto de tapeçarias estará reunido na Bienal. As mostras nos dois espaços estão abertas à visitação até o dia 5 de dezembro.