Esquecer, não lembrar e reimaginar – Ensaio Palavra-Imagem com Hoda Barakat, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige
Neste Ensaio, seguindo o especial Oriente Médio, proponho o diálogo entre as palavras da escritora libanesa Hoda Barakat, com a dupla Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (ambos nascidos em Beirute em 1969). Cartas de 6 personagens do livro “Correio Noturno”, de Barakat conversam com as fotografias do projeto “Wonder Beirut” da dupla. Cartas que nunca chegam ao seu destino, nem sequer são enviadas… mas se conectam e se costuram umas às outras na formação deste impactante romance.
Notas sobre “Correio Noturno”, de Hoda Barakat
Por Geraldo Adriano Campos (Coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe)
Hoda Barakat é uma escritora libanesa, nascida em Beirute, em 1952. Desde o final da década de 1980 vive em Paris, mas mantém o árabe como a língua com a qual produz suas obras. Além de romances, publicou peças, um livro de contos e um livro de memórias. Seu livro “Correio Noturno”, lançado em 2017 e premiado com o “International Prize for Arabic Fiction”, foi publicado no Brasil em 2020 pela Editora Tabla, com tradução da professora Safa Jubran.
O livro é composto de seis cartas, cujos autores e autoras estão, cada um à sua maneira, buscando diferentes tipos de refúgio. O entrelaçamento entre as cartas põe em evidência subjetividades ativadas no contato com fragmentos da memória alheia. Por isso, ainda que as missivas dos personagens de Barakat nunca atinjam seus reais destinatários, produzem naqueles que as encontram o desejo de escrever, criando uma continuidade narrativa pela costura de traumas individuais e coletivos de migrantes e refugiados do mundo árabe contemporâneo.
Entre diversos outros aspectos, a obra nos convoca a refletir sobre o limiar do que um corpo é capaz de suportar. Não é, afinal, um livro sobre lugares, mas sobre corpos e experiências.
A indeterminação de países de origem e destino dos personagens não é, de tal modo, aleatória. Sabemos apenas que os narradores são árabes, o que parece ser suficiente para situá-los na atmosfera de deslocamento que a autora nos oferece. As forças políticas, econômicas, sociais que impulsionam os deslocamentos de imigrantes e refugiados na região estão presentes no livro, mas não como elemento literário central.
Os personagens de “Correio Noturno” transitam por fétidos quartos de hotel, porões de tortura, bordéis, campos de refugiados, aeroportos. São pessoas que vivem nas ruas ou em condições de solidão e vulnerabilidade em países estrangeiros. Há sempre uma espera que se aproxima com a noite, seja a expectativa de um encontro ou de uma possibilidade qualquer de redenção, que não se realiza.
O tom confessional das cartas é atravessado por torturas realizadas pelo Estado, abandono, estupros, assassinatos, guerra, homofobia. Em cada descrição, é nítido que a experiência do corpo estrangeiro é produzida em suas articulações de gênero, como já recordara a historiadora Margot Badran em seu texto “Foreign Bodies: Engendering Them and Us” (2003). Os relatos sobrepõem diferentes formas de violência relacionadas a gênero e sexualidade, que se expressam nos vínculos estabelecidos com sistemas patriarcais e na proliferação de corpos violados. Assim, lidas em conjunto, as cartas compõem um mosaico de experiências de corpos que se deslocam entre fronteiras, físicas e simbólicas.
Diante da possibilidade de narrar essas experiências, chama a atenção o fato de que as cartas são elaboradas em “não-lugares” (para usar um termo do antropólogo Marc Augé) – o hotel, o aeroporto, o campo de refugiados – locais pensados como pontos de passagem e não de permanência, logo, incapazes de produzir identidades.
As narrativas do livro não comportam, portanto, apenas histórias de vidas dilaceradas. É, sobretudo, a relação com o espaço que está fraturada (os dramas dos personagens árabes imigrantes indocumentados em países europeus são exemplos disso).
Convém lembrar também a importância do gênero epistolar para os estudos migratórios e para a produção artística relativa ao tema, dada a característica da carta como documento privado que sugere uma aproximação particular entre a esfera íntima do cotidiano e a História.
O ato de falar a partir dos fragmentos de memórias alheias (mesmo que seja de personagens ficcionais), como esforço de produção de sentido histórico face a grandes tragédias, é um tema familiar à produção estética contemporânea do Líbano. As interrupções e ruínas que fizeram emergir os mecanismos políticos de produção da amnésia social no Líbano após a Guerra Civil são parte importante da trajetória da geração que desenvolve seus trabalhos a partir dos anos 1990. São artistas-pensadores cuja reflexão é marcada por uma ênfase na problemática relação entre arquivos, imagens, desaparecimento e memória coletiva. Na lista de obras de artistas libaneses que se organizam ao redor da potência subversiva de conectar-se com as memórias alheias podemos pensar em “Wonder Beirut” (1997-2006) de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (ambos nascidos em Beirute em 1969), no projeto do “Atlas Group” (1989-2004) de Walid Raad (nascido em Chbanieh em 1967) e no filme “Yamo” (2011), de Rami Nihawi (nascido em Beirute em 1982), entre muitos outros exemplos.
Por um lado, o livro de Hoda Barakat nos convida a observar como a narração do trauma pela escrita pode se tornar um refúgio para personagens deslocados e marginais em busca de alguma redenção possível. Por outro lado, faz-nos pensar no belíssimo ensaio “Atlas” (2012), de Antonio Tabucchi, quando o escritor nos recorda que as representações espaciais sempre podem mudar, assim como as fronteiras entre países. As únicas fronteiras que não mudam, diz ele, são “as do corpo humano e o que este sente quando são violadas”. Por isso, tomo emprestado o fragmento do poema “Torturas” de Wislawa Szymborska, que Tabucchi usa para concluir seu ensaio.
“Nada mudou./O corpo é doloroso,/ tem que comer e respirar, e dormir,/tem uma pele fina e, logo abaixo, sangue;/ tem uma considerável quantidade de dentes e unhas,/seus ossos são frágeis, suas articulações maleáveis./ Nas torturas, se descobre tudo isso.”
Trechos das cartas interpretados em árabe por Safa Jubran com tradução em português:
Carta 1 – Um imigrante ilegal escreve para sua amante em um pequeno apartamento.
“Aquele anoitecer ficou na minha mente, não importa que horas eram do dia. Era igual ao anoitecer quando o sol desaparece no horizonte, quando todas as criancinhas choram, todos os bons românticos ficam melancólicos, de Ihsán Abdel-Quddus a Rilke. Uma tristeza inexplicável que envolve as delicadas e belas criaturas.”
https://www.youtube.com/shorts/M_gkPLyT0yM
Carta 2 – Uma mulher madura redige sua carta enquanto espera um antigo amor em um quarto de hotel.
“Não estou aqui, neste quarto, para voltar para trás nem para vê-lo ou ver com você como eu era jovem ou o quanto a primavera era bonita e intensa no país. O país que já era, que caiu e quebrou como um grande vaso de vidro. Seria trágico, pura tristeza e grande amargura.”
https://www.youtube.com/shorts/zKtmueoXZqQ
Carta 3 – Um ex-torturador em fuga escreve para a mãe.
“Esse é também um homem sacrificado pelo destino, a quem nem Deus nem os homens perdoarão.” “Eu… acho que ainda vou pensar sobre essa carta, se envio para você ou entrego em mãos, ou se devo destruir tudo o que escrevi porque contém confissões sinceras que podem me levar à forca ou à prisão perpétua. Amanhã decido.”