Chegando aos poucos – Ensaio Palavra-Imagem com Iman Humaydan

Cassiana Der Haroutiounian

Seguindo com nosso especial sobre o Oriente Médio, temos a importante romancista libanesa Iman Humaydan na palavra e na imagem. Diferente dos outros dois Ensaios, este não traz trechos de seu livro, mas um texto e um vídeo com os quais participa de uma exposição de arte em Basel, Suíça, que segue até 21 de novembro. Ela, que certa vez descreveu Beirute como “a cidade que dança sobre suas feridas”, além de ser a organizadora da antologia “Beirute Noir” publicada pela Tabla, é também professora de escrita criativa na Universidade de Paris 8 Vincennes-Saint-Denis, é Fundadora e presidente da Associação PEN no Líbano. “Beirute Noir” reúne 15 contos de 14 autores libaneses e um palestino nascido e criado em Beirute, formando um mosaico de perspectivas muito diferentes sobre a mesma cidade. O rótulo noir encontra uma diversidade de formas, mas há algo em comum entre essas histórias: todas evocam a guerra civil (1975-1990). Esta coleção de contos é parte de um registro vibrante e vivo de Beirute. Durante a pandemia de Covid-19, o trabalho de Humaydan foi um pouco além da escrita, criando performances audiovisuais,  “talvez como uma boa consequência do isolamento”, reflete ela. Enquanto Beirute segue enfrentando desafios cada vez mais complexos, seu povo – e sobretudo seus artistas – continuam a criar inspirados nesta que é uma das capitais culturais do mundo. Beirute será reconstruída pelo seu povo. E os arquitetos desta reconstrução serão seus artistas.

Chegando aos poucos: fragmentos da jornada de uma vida

Iman Humaydan

I

Chegar aos poucos é como um pássaro se aproximando da minha janela de manhã cedo. É como relembrar uma memória sutil, a lembrança de alguém querido que partiu – podendo sentir a presença dele ou dela –, ou ainda a lembrança de um lugar onde vivemos e deixamos para outra pessoa. É um sentimento de pertencer a um momento, a um lugar, a uma memória doce ou triste. Poderia ser chegar de uma experiência de dor… dor nua.

Mudar de casa é uma forma de domar a dor. Isso ajuda com que a dor e eu consigamos viver juntos no amanhã.

A própria vida é uma história. Ela vem em diferentes ritmos, lenta, rápida; às vezes passa e ninguém dá a mínima. Ela vem chegando pela história de alguém, fragmentos de uma história, um lugar, um momento, um sentimento, um vislumbre. Com cada fragmento de história se dá um passo adiante.

II

Nós chegamos de várias partes do mundo para a nossa reunião familiar na Califórnia. Irmãos, irmãs, esposas, maridos, sobrinhas, sobrinhos e netos.

Em nossa reunião familiar, contamos histórias da infância. Essa era a maneira mais forte de nos curarmos da separação.

Nós tentamos transmitir essas memórias aos nossos filhos. Transmitir nossas histórias foi difícil, mas nunca desistimos. Nos abrigar nas memórias nos unia, e contar histórias ainda é um presente. É dar uma memória embrulhada em amor e compaixão mesmo que possa evocar dor.

É a lembrança de nossa mãe que nos deixou aos poucos, ao longo dos anos de doença. Mesmo lenta, a separação continua uma experiência dramática. Separar-se dela, cuja a vida foi marcada pelo silêncio.

Por anos, eu herdei esse seu silêncio, até que o feitiço foi quebrado pela escrita.

Todos nós partimos, um depois do outro…

III

Nós estamos espalhados. Nossas jornadas estão espalhadas. O esquecimento nos acompanha. Mudar de endereço e esquecer são duas coisas conectadas.

Eu tinha dois anos de idade quando um de meus vários irmãos se mudou para os Estados Unidos. Ele voltou ao Líbano para uma visita no verão de 1969. Minha mãe, que estava então muito doente, não reconheceu o filho. Ela cobriu sua cabeça com um longo tecido branco e fino como fazem as mulheres drusas quando um homem estranho entra em casa. Ele disse a ela com os braços abertos “mama, sou eu Anees, seu filho”. Minha mãe o abraçou e chorou. Ele levou tanto tempo para “voltar”.

Ir embora e esquecer os lugares de dor foi sua maneira de curar-se.

Assim como para mim, lembrar e escrever a dor foi minha maneira de curar-me.

IV

Anos se passaram antes que eu aprendesse a ser mãe. Eu aprendi tarde, depois de ter três filhos. A maternidade me alcançou depois de uma jornada longa e difícil.

Eu tinha 18 meses quando minha mãe foi internada num hospital psiquiátrico. Ela teve um colapso nervoso. Começou quando alguém disse a ela que um dos seus filhos havia sido morto por um policial. Era maio de 1958, logo após o Líbano ser tomado por distúrbios sócio-políticos.

Durante a doença de minha mãe, eu e meu irmão – que era dois anos mais velho – ficamos aos cuidados da minha irmã, que era casada e tinha um bebê alguns meses mais novo que eu. Ela cuidou de nós.

A doença de minha mãe foi o começo de uma vida triste e dolorosa pela qual teve que passar, assim como seus filhos.

Isso afetou minha vida e fez com que tomasse um rumo diferente. Me privou de viver uma relação de mãe e filha. Me privou de testemunhar e aprender a maternidade a tempo. Mas nada pode ser a tempo. Eu estou numa jornada perpétua de aprendizagem, conhecimento e descoberta. Uma espécie de eterna discípula da vida.

V

A morte de minha mãe marcou uma partida significativa. Minha partida de ser uma criança para ser alguém que aprendeu a crescer por si mesma, alguém que aprendeu a ser mulher sozinha e que, mais tarde, na vida adulta, aprendeu por si mesma a ser mãe. Uma partida contínua com infinitas chegadas.

A memória que tenho de minha mãe é vaga. A mais forte foi o dia de seu funeral. Eles a trouxeram para casa num caixão. Ela parecia estar dormindo deitada, vestida com um longo vestido de seda branco. Ela morreu num hospital no último dia de 1970. Foi a primeira vez que eu encarei a morte. Era tão cedo para me tornar órfã.

Ela teve 14 crianças saudáveis, um aborto espontâneo e uma criança morta. Ela morreu aos 54 anos. É possível que ela nunca tenha visto sua menstruação.

Dizem que meninas aprendem muito cedo a ser mães. Não foi meu caso.

Eu aprendi que a morte precoce de uma mãe é algo cruel.

VI

Nos anos 50, dois de meus irmãos mais velhos viajaram para trabalhar no Kuwait. Depois uma das minhas irmãs partiu, depois outra, e outra e assim por diante. Algumas viajaram para os Estados Unidos para estudar. Eles partiram como os passarinhos que deixam o ninho, um depois do outro, como um cacho de uvas se despedaçando. Eu, que deixei o Líbano a passos lentos, me descobri escolhendo a Europa como segundo lar.

Ou foi a Europa que me escolheu.

Eu não lembro quando foi a primeira vez que meus irmãos foram embora de casa. Eu era muito jovem para lembrar. Eles me contam até hoje histórias de como eu me escondia em suas malas para ir com eles. Era minha avidez por sair, por me separar do lugar onde tinha nascido. Partir e chegar são parte de uma jornada, uma parte de mim, da minha identidade. Com a separação vem a chegada. É ir adotando um lugar novo atrás do outro. Todos são salas de uma grande casa. Para mim, Basileia é uma dessas salas.