O corpo feminino e seu direito – Ensaio Palavra-Imagem com Rachid Al-Daif e Mireille Honein
O Ensaio desta semana busca pontos de contato entre a obra de dois artistas libaneses: a ativista Mireille Honein e o escritor Rachid Al-Daif, autor do romance “E quem é Meryl Streep?” (Editora Tabla, 2021, trad. Felipe Benjamin Francisco). O livro toca em tabus da sociedade libanesa ao lançar luz sobre a intimidade de um jovem casal na Beirute dos anos 1990. A narrativa traz cenas de sexo explícito que instituem a cama como o campo de batalha onde homem e mulher disputam o controle sobre o corpo feminino. O romance – que já foi proibido diversos países árabes – é uma crítica à hipocrisia da sociedade patriarcal e uma defesa da emancipação feminina, abordando entre outros temas o sexo antes do casamento, o divórcio, a virgindade e o machismo. Em meados de 2017, ativistas apoiados pela “Abaad“ – Uma associação civil independente que visa alcançar a igualdade de gênero no Oriente Médio e Norte da África – conseguiram fazer com que o parlamento libanês chegasse a um acordo sobre um projeto de lei para abolir o polêmico artigo 522 do código penal, que permite que estupradores escapem da prisão casando-se com suas vítimas. Numa tentativa de pressionar o parlamento a abolir totalmente esta lei, Mireille Honein criou uma instalação com 31 vestidos de papel balançando entre as palmeiras em Ain El Mraysseh, para apoiar a ONG e escancarar a injustiça. Ainda há muito o que acontecer para valorizar a mulher. Mas cada passo é gigante. O Oriente Médio foi, por muitas vezes, retratado como uma mulher indefesa e em perigo a ser salva pelos homens brancos ocidentais. Faz tempo que as mulheres orientais dão provas que são donas de seus próprios destinos e protagonistas das suas histórias. Se houver uma reconstrução possível para o Líbano, essa reconstrução é feminina.
Sinopse do livro (site da editora)
“E quem é Meryl Streep?” é um romance desafiador do polêmico autor libanês, Rachid Al-Daif. Como em outros livros seus, ele batiza o protagonista e narrador do romance com seu próprio nome. Rachid, o personagem, é um libanês recém-casado que se vê ameaçado pela ideia da emancipação feminina.
Ao se dar conta de que sua esposa usa a presença da TV na casa dos pais como desculpa para ficar longe de casa, Rachid compra uma televisão na esperança de atraí-la, mas à medida que o laço frágil que une o casal se desintegra, a televisão passa a ocupar um lugar cada vez maior na sua vida.
Numa cena crucial, ele se vê sozinho assistindo ao filme “Kramer versus Kramer”. Na ausência de legendas, Rachid se esforça para entender o que se passa no filme e projeta o comportamento de sua esposa na personagem vivida por Meryl Streep, que ao mesmo tempo que o cativa, também o apavora por representar um esforço de libertação das mulheres que ele considera inaceitável.
Rachid Al-Daif constrói um personagem reacionário, por vezes repulsivo, e não tem medo de mergulhar na mente desse indivíduo e descrever nua e cruamente sua mentalidade, inclusive sua vida sexual, real ou imaginada. O livro foi considerado pornográfico no mundo árabe e obteve um enorme sucesso tanto no idioma original, como em outros idiomas.
Trechos do Livro “E quem é Meryl Streep?”
No final das contas, ela concordou em definir a data do casamento, sem que ninguém a obrigasse. Fui franco ao extremo com ela e lhe pedi que, se não quisesse mais se casar, anunciasse isso para seus pais, minha mãe, minha tia e os parentes. Então ela respondeu de forma enfática que queria se casar, sim. No entanto, às vezes, quando saíamos juntos, ela me pedia para não ter pressa com esse assunto. Era estranho como ela se sentia forte quando estávamos só nós dois. Ela me dominava quando estava sozinha comigo, por isso eu sempre procurava fazer com que declarasse seu compromisso com algo importante diante de todos os parentes e, sobretudo, na presença da mãe, para que esta dificultasse as coisas se ela se arrependesse mais tarde. Havia momentos em que eu a constrangia, com o objetivo de fazê-la manifestar publicamente uma opinião que ela disfarçava, como acerca de ter um filho logo, já que seu desejo era adiar a gravidez para “a hora certa”. Assim, eu iniciava de propósito esse tipo de conversa diante de todos, para que, caso ela expressasse sua opinião, as pessoas a repreendessem! (pp.96-97).
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Há coisas que permanecem imutáveis por mais que o ser humano progrida e por mais que os tempos e o lugar mudem; contudo, o importante é que saibamos contemplá-las bem e não as tomemos pelas aparências. O respeito à mulher é um dever indiscutível, assim como o fato de o marido desfrutar da esposa e a esposa do marido também é algo indiscutível, mas dentro dos limites estabelecidos que só enxerga bem aquele que quer ver. Se o homem e a mulher estiverem em harmonia, é um direito dos dois desfrutar do que quiserem, onde quiserem, como quiserem etc.; mesmo assim o olho deve permanecer atento aos limites estabelecidos — e ainda que esses limites não sejam respeitados, pelo menos o ser humano deve saber o que aconteceu com eles, o quanto se afastou e o quanto se aproximou deles. Por mais que os novos tempos mudem e os costumes e as tradições ocupem outro lugar, o homem permanecerá homem e a mu- lher, mulher. A mulher deve sempre, em toda circunstância, responder ao marido quando ele a chamar, e deve a ele obedecer nos momentos decisivos, mesmo que essa obediência a sobrecarregue psicologicamente, pois essa sobrecarga psicológica é recompensada depressa, assim que a mulher vê que seu marido retoma a calma, a compaixão e a castidade. Ele necessariamente as retomará. O fato de ela pular sobre ele como uma louca para se vingar, derramando na boca dele o que ele depositou na sua boca — à força e com ódio — é realmente inaceitável. (pp. 180 e 181).
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As cenas continuavam passando diante de mim, subjugando-me, até que meu desejo foi aumentando de um modo como nunca acontecera. Certa vez minha esposa me disse que filme pornô é como fertilizante químico: acelera o crescimento do fruto, aumenta seu tamanho ao máximo, porém faz perder o mais importante, o gosto e o sabor! Onde ela teria aprendido aquilo? Sempre que me via espantado com algo que havia dito, ou quando conseguia ler a desconfiança e a dúvida nos meus olhos, minha esposa dizia que lera aquilo numa revista em inglês. (p.65).
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Puseram certos tipos de propaganda em vias e lugares públicos, chocantes para nossos costumes e tradições. Nós somos uma sociedade conservadora. Para nós, a honra ainda é o valor mais elevado. Todo dia lemos nos nossos jornais alguma notícia sobre o assassinato de uma jovem para lavar a honra, ou seja, por causa do seu relacionamento com um homem. O irmão mais novo a mata, quando não o mais velho, o pai também pode matá-la, ou mesmo o filho, caso tenha um. Ontem mesmo um irmão matou a irmã porque esta fugiu para se casar às escondidas com o homem que amava, indo contra a vontade do irmão de casá-la com outro homem. Depois de tudo isso, ainda mostram os métodos de prevenção da Aids, liderados pelo uso do preservativo, em anúncios por todos os cantos das avenidas principais. É como se tivessem decidido desatar o sexo dos laços do matrimônio. Não sou puritano, porém estou do lado do pudor e da vergonha, uma vez que esse pessoal está agindo como se o espaço público fosse algo diferente do interior dos lares. Veiculam na televisão propagandas de incentivo ao uso do “preserva- tivo” (é assim que se chama!) para quando o parceiro estiver inseguro quanto à parceira. Eu não faço ideia de qual é a diferença entre a tela da televisão e o quarto do casal (p.112).
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Para minha mãe, uma situação imprópria era um homem pôr a mão sobre o ombro da mulher no meio da rua, ou então entrelaçar sua mão na dela. “Ninguém mais teme a Deus!”, costumava dizer. Ela sentia falta de ver meninos e meninas juntos durante o período em que pensava que eu era homossexual e, ainda por cima, um homossexual afeminado, isto é, não era o macho ativo, e sim a fêmea passiva. Depois, sua imaginação a fez lembrar de que, quando eu jogava futebol com meus amigos, só gostava de ser o goleiro! Minha tia deu muita risada quando minha mãe lhe contou isso, porque não entendeu exatamente o que ela queria dizer. Só muito mais tarde é que ela foi entender. Na cabeça da minha mãe, o que iguala o goleiro à fêmea é que os dois são o alvo, nos dois entra alguma coisa e os dois ficam parados à espera de que os outros corram atrás deles! (p.87)